Publicado no portal Brasil 247, o artigo Defender a revolução bolivariana não tem nada a ver com apoiar os erros e trapalhadas de Maduro (30/7/2024), do jornalista Bepe Damasco, faz a famosa crítica pela “esquerda” ao presidente da Venezuela no momento em que Nicolás Maduro é alvo de uma tentativa de golpe de Estado, reconhecidamente orientado pelos EUA, inclusive pelo próprio Damasco. “Contudo, a defesa da soberania nacional e popular do país vizinho não pode esconder os graves erros de Nicolas Maduro”, diz o jornalista, que então enumera os “crimes” de Maduro “de frente para trás:”
“Maduro, para delírio da extrema-direita do Brasil, atacou as nossas urnas eletrônicas, criticando sua falta de auditagem, verdadeiro mantra bolsonarista.”
Ora, por que “atacou”? Que os bolsonaristas façam demagogia com a impopular urna eletrônica era esperado, uma vez que é o que fazem com todas as questões democráticas que a esquerda entrega de bandeja para a extrema direita. Se Maduro está errado porém, ao falar que o sistema eleitoral venezuelano é mais auditado do que o brasileiro, Damasco deveria demonstrá-lo na prática, provando o engano cometido pelo presidente do país vizinho. Finalmente, se críticas ao sistema eleitoral brasileiro podem ser rebatidas como “mantro bolsonarista”, que dizer da frase abaixo?
“Nada é infalível, só Deus. Vamos pegar o que aconteceu aqui, quantas denúncias já foram feitas de defunto que vota, de cidades que têm mais eleitores do que habitantes”.
A frase acima não pertence a nenhum bolsonarista, mas ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (Para Lula, participação da Abin nas eleições é ‘absurda’, Folha de S. Paulo, Fábio Zanini, 6/6/2002). Pode escapar a Damasco, mas a fé cega e dogmática da esquerda brasileira às infalíveis urnas eletrônicas é um fenômeno muito recente, que coincide com um período extremamente defensivo do campo, desencadeando derrotas históricas como o golpe de 2016, as “reformas” trabalhistas e previdenciárias, a prisão do próprio Lula e sua proscrição arbitrária nas eleições de 2018, entre outros sintomas menores, mas importantes da debilidade do campo, que ganhou as eleições de 2022, mas não conseguiu sair da defensiva ainda e vê.
Isso deve ser lembrado para demarcar o período em que a esquerda inicia uma sequência de capitulações, que, entre outras coisas, produzem a confusão expressa pelo jornalista, de que a desconfiança com o sistema eleitoral brasileiro seria uma política bolsonarista. Nunca foi e tanto não é que, uma vez alçado ao Palácio do Planalto (sede do governo federal), o ex-presidente Jair Bolsonaro nada fez para mudá-lo.
Já Maduro, que Damasco se propõe a criticar, venceu não apenas tentativas de golpes, mas uma invasão norte-americana, empreendida pelo ex-presidente Donald Trump. Difícil dizer que o bolivarianismo está acuado nessas condições, ao contrário de seus pares no País e, mais ainda, que a esquerda brasileira está em posição de dar lições ao mandatário da nação vizinha no que diz respeito a enfrentar os inimigos do povo.
“Maduro”, continua Bepe, “em vez de se comprometer, em nome da normalidade democrática, em passar a faixa presidencial caso perdesse a eleição, jogou lenha na fogueira falando em ‘banho de sangue’”. Ora, e o que a extrema direita está fazendo agora? O mesmo que fez a extrema direita boliviana ao derrubar o presidente Evo Morales, o mesmo que faz o ditador e golpista Javier Milei na Argentina, o mesmo que Nayib Bukele em El Salvador, o mesmo que Daniel Noboa no Equador e o mesmo que Jair Bolsonaro ameaçou fazer no Brasil, e que tanto assustou a esquerda, a ponto de desorientá-la completamente: uma onda de violência e perseguição política que tornam a figura de linguagem muito apropriada.
Se o Brasil destoa dos outros exemplos, foi por uma mera questão de oportunidade, porém mesmo o maior país da América Latina observou uma experiência de incremento da violência política significativa desde 2014, ano em que o imperialismo decidiu se livrar do governo de esquerda, mostrando que “banho de sangue” é o que acontece quando a direita concretiza seus golpes. Damasco deveria explicar melhor porque o fato de Maduro alertar o povo venezuelano para o que a realidade demonstra, de maneira tão eloquente, é negativo.
Deveria o líder bolivariano trair o povo e tratar como normal a direita de seu país? Minimizar a ameaça representada pelos prepostos do imperialismo seria equivalente a isso. A direita venezuelana sempre foi famosa pelo seu reacionarismo, mas, em tempos de redes sociais, horrorizou o mundo pela violência com que caça simpatizantes do chavismo nas ruas e incendeia hospitais (!!!). Os chamados guarimberos (como são conhecidos os militantes da extrema direita do país vizinho) nada deixam a dever em relação à odiosa direita ucraniana do Euromaidan e do Massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa.
“Maduro, com nítidos objetivos eleitorais, sacou da algibeira a anexação do território de Essequibo, região rica em petróleo e controlado pela Guiana desde o fim do século 19”, diz o jornalista, demonstrando um desdém pela questão nacional que torna contraditório uma afirmação de aparência mais progressista, quando critica a direita venezuelana por “oferecer aos EUA, de mão beijada, o abundante petróleo venezuelano”. De aparência, porque a continuação do artigo mostra a falta de profundidade política na afirmação.
A luta contra o imperialismo é a questão central dos povos oprimidos de nosso período histórico, sendo a principal expressão da luta de classes da contemporaneidade. Perder de vista o fato de todos os problemas supracitados terem origem na necessidade dos países desenvolvidos saquearem os países atrasados é simplesmente perder de vista o essencial. Não é a maldade no coração de Milei, Bolsonaro, Noboa e tantos outros direitistas que os leva a serem horríveis, mas as tarefas decorrentes da necessidade do imperialismo de arruinar a América Latina que os leva a adotarem uma política tão fascista e entreguista.
A questão do Essequibo é antiga para a Venezuela, sendo retomada em um momento não eleitoralmente oportuno, mas, principalmente, favorável do ponto de vista político, quando a sequência de derrotas do imperialismo animou aspirações progressistas das nações oprimidas. A falta de parâmetros de fundo social para analisar a política, no entanto, leva Damasco a desprezar uma reivindicação não apenas justa, mas progressista e que tende a beneficiar o Brasil, que também tem porções do seu território a ser defendido na região.
Por fim, o colunista de Brasil 247 cita o imbróglio envolvendo Maduro e o presidente Lula:
“Também não me parece adequado o tratamento que Maduro dispensa a Lula, que tem sido um aliado fiel. O presidente brasileiro não tem poupado esforços para reintegrar a Venezuela ao Mercosul e foi um dos fiadores do Acordo de Barbados, através do qual a Venezuela assumiu o compromisso de realizar eleições limpas, transparentes e democráticas.
Até o momento em que escrevia este texto, o ex-chanceler Amorim, enviado do governo Lula a Caracas, seguia com a posição correta de aguardar a divulgação das atas para o governo Lula reconhecer o resultado da eleição.”
Ocorre que Lula é o lado equivocado nas questões levantadas pelo colunista. Em primeiro lugar, dizer-se “assustado” com as declarações de Maduro sobre a extrema direita foi uma intromissão gratuita aos assuntos venezuelanos e, pior, em apoio à oposição que Maduro enfrenta. Foi uma chance de ficar calado desperdiçada e que ajudou enormemente à farsa golpista montada pelo imperialismo, que, desde o começo, tem trabalhado para isolar Maduro.
Ainda, o presidente brasileiro jamais pediu atas de eleições nem mesmo à Argentina, que no último pleito, elegeu ninguém menos que Milei. Nem por isso Lula deixou de reconhecê-lo como vencedor das eleições presidenciais. Por que haveria agora de precisar das venezuelanas?
Lula comete um grave erro ao ceder às pressões do imperialismo, fortalecendo a direita lá e também aqui. E Damasco também, ao dar às pressões feitas pelos EUA contra o chavismo um ar de esquerda, contribuindo para a confusão e para impulsionar a direita, lá e aqui. É, portanto, um desserviço para a luta política, exceto para os guarimberos e os interesses imperialistas.