A Polícia Federal tem cerca de 2 mil delegados na ativa, que passam a ganhar, a partir deste mês, 34 mil reais brutos. Até o fim do governo Lula, o salário chegará a 41 mil, mais ou menos 90% dos proventos do próximo ano de um juiz do Supremo Tribunal Federal, teoricamente a remuneração máxima no serviço público. O fato de ser uma carreira muito, mas muito bem paga, num país onde a renda média é de 3,2 mil reais, não evita que alguns personagens estejam na berlinda, por motivos diferentes: Alexandre Ramagem, Alexandre Saraiva, Fábio Shor, Luís Fernando Chuy… O próprio presidente da associação nacional da categoria, Luciano Soares Leiro, desponta na ribalta. Motivos? Uma doação e o emprego da noiva.

A ADPF, entidade comandada por Leiro, realizou em maio um simpósio sobre segurança. Coletou entre os patrocinadores 4,5 milhões de reais. Leiro repassou 50 mil à Associação Mulheres Esquecidas, ONG atuante no Distrito Federal no apoio e na reinserção social de detentas. A organização foi fundada em 2021 e é dirigida desde então por Shaila Manzoni, esposa de um pastor, Gabriel Manzoni, e cunhada de um deputado distrital em Brasília de primeiro mandato, Thiago Manzoni. O deputado é filiado ao PL de Jair de Bolsonaro e seu slogan é “a direita em todas as direções”, nome de seu podcast. Certos filiados da ADPF viram a doação como gesto de preferência política indevida de Leiro.

Com o delegado à frente desde 2021, a associação adotou em alguns momentos tom crítico em relação ao governo Bolsonaro, mais por razões salariais do que filosóficas. O reajuste da carreira anunciado em 2023, pago de forma escalonada a partir deste mês, era esperado no tempo do capitão. Que não só não o concedeu, como fez uma reforma da Previdência, em 2019, que ampliou de 6% para 11% o desconto no holerite dos policiais a título de contribuição.

A noiva de Leiro, Mayra de Souza Correa, é, desde maio do ano passado, funcionária do gabinete do senador Marcos do Val, do Podemos capixaba. Um mês após a contratação, o parlamentar foi alvo de uma operação da PF no âmbito de investigações sobre os planos golpistas do bolsonarismo. Do Val também está metido em uma história esquisita, a tentativa de gravar, por interesse do capitão, o juiz Alexandre de Moraes, do Supremo, no fim de 2022. Alguns filiados da ADPF dizem que só souberam do vínculo trabalhista da noiva de Leiro após a batida policial de 2023.

Na associação, há quem ache pouco. Delegados da seção mineira fizeram uma assembleia e cobraram providências judiciais contra o senador e o afastamento de Leiro da direção da ADPF, ainda que temporariamente. Também cobraram providências contra o deputado Eduardo Bolsonaro, que em julho havia dito o seguinte em entrevista a um jornal do Paraná: “Esperar serenidade e bom senso dessa Polícia Federal, que são as cadelas do Alexandre de Moraes, não dá mais”. A pressão levou Leiro a convocar uma assembleia-geral para a segunda-feira 5, a fim de decidir sobre uma investigação criminal contra Do Val a ser requerida à Procuradoria-Geral da República e à PF e, ainda, sobre uma ação civil, por danos morais, a ser apresentada à Justiça contra Eduardo e a União.

CartaCapital questionou Leiro sobre a doação de 50 mil reais e a relação trabalhista da noiva com o senador. A propósito de Mayra, ele respondeu, por meio da assessoria de imprensa da associação, não haver “qualquer vínculo de terceiro que tenha alterado ou alterará a conduta firme e proativa da ADPF em defesa de seus associados”. Quanto à doação, disse ser uma prova do “comprometimento da ADPF com a segurança da sociedade, pois tal ação tem impacto direto no sistema de persecução penal e segurança pública – prevenção, repressão e execução da pena”.

Shor é atacado pela claque de Bolsonaro. Saraiva foi punido por expor as falcatruas de Ricardo Salles

E os outros delegados na berlinda? Shor é tido pelo bolsonarismo como inimigo a ser abatido. Está à frente do caso das milícias digitais, repleto de simpatizantes do ex-presidente. Herdou-o da delegada Denisse Dias Ribeiro, a quem os fiéis do capitão haviam acuado anteriormente. Ribeiro saiu de licença-maternidade no início de 2022 e, na volta, não reassumiu o caso das milícias. Foi trabalhar no Superior Tribunal de Justiça, onde até hoje é a responsável pela área de segurança. Antes de finalizar o inquérito das joias, Shor havia concluído, em março, a investigação sobre o cartão de vacina anti-Covid fajuto em nome de Bolsonaro e apontado crime. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu, porém, a reabertura das apurações.

Agora em agosto, Shor deve finalizar o inquérito sobre a tentativa de golpe contra a eleição de 2022, enredo que passa por aquele decreto que anulava a vitória de Lula e deságua no quebra-quebra bolsonarista de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Na campanha presidencial, o delegado havia despertado a ira de colegas bolsonaristas. Um grupo de 131 policiais aposentados solicitara à Procuradoria-Geral a abertura de um processo contra ele por abuso de autoridade. Motivo: a operação da PF, autorizada pelo Supremo, contra empresários que, em um grupo de ­WhatsApp, apoiavam o golpismo do capitão.

Outro inquérito policial de desfecho prometido para agosto é o da “Abin paralela”, trama que tem como uma das estrelas o delegado Alexandre Ramagem, candidato do PL à prefeitura do Rio de Janeiro. Neste caso, o encarregado não é Shor, mas Daniel Carvalho Brasil Nascimento. Amigo do clã Bolsonaro, Ramagem dirigiu a Agência Brasileira de Inteligência de 2019 a 2022 e teria montado um serviço “informal” para proteger o capitão e perseguir adversários, sonho de Carlos Bolsonaro. A “Abin paralela” tinha outro delegado da PF, Marcelo Bormevet, preso em julho em caráter preventivo, a pedido de Nascimento e com aval do Supremo.

O andamento das investigações sobre a “Abin paralela” levou o atual chefe da agência, um delegado, Luiz Fernando Corrêa, a escolher outro colega de profissão, Luís Fernando Moraes Chuy, para o cargo de corregedor. Chuy deve assumir o posto neste mês. A Intelis, a União dos Profissionais de Inteligência da Abin, reclama, e muito, da indicação. Vê “conflito de interesses” justamente por Chuy ser da PF e oficial da reserva do Exército. A “Abin paralela” tinha a participação de militares, caso do sargento verde-oliva Giancarlo Gomes Rodrigues, outro preso preventivamente em julho. Para a Intelis, o corregedor deveria ser um funcionário da Controladoria-Geral da União.

Limpeza. Shor não alivia para Bolsonaro. Chuy será corregedor da Abin – Imagem: Redes sociais/ADPF/DF e Redes sociais

A atual corregedora é uma servidora da agência, Lidiane Souza dos Santos, nomeada em agosto de 2022. Ramagem não estava mais no órgão, mas ela era de seu time. Por ocasião da operação da PF que prendeu Bormevet, o delegado Nascimento queria compartilhar com a corregedora todas as descobertas sobre a “Abin paralela”. Gonet foi contra. Desconfiava que Lidiane Santos poderia proteger colegas. Moraes concordou e negou o compartilhamento. Eis a razão de Corrêa ter decidido nomear Chuy, um conhecido do ministro do STF, por conta do período em que trabalhou no Tribunal Superior Eleitoral, durante a presidência de Moraes, com a missão de combater as fake news na eleição de 2022. A atual presidente do TSE, Cármen Lúcia, dispensou Chuy ao assumir, em junho passado.

Ter acionado a corregedoria, mas a da PF, contra o policial que comandou a corporação em 2021 e 2022, Paulo Maiurino, sem levar o assunto aos superiores, foi uma das causas de o delegado Alexandre Saraiva ter sido punido internamente em julho. No governo Bolsonaro, Saraiva chefiou a PF no Amazonas e conduziu investigações que atingiram o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em um caso de exportação ilegal de madeira. À época, chegou a enviar um alerta ao Supremo, segundo o qual Salles e o então senador Telmário Motta, de Roraima, teriam tentado atrapalhar a polícia e acobertar os madeireiros. A investigação e o alerta custaram sua degola do posto no Amazonas, por decisão de Maiurino. Saraiva reagiu e pediu à corregedoria para, entre outras coisas, apurar a origem de dinheiro usado pelo então diretor-geral na compra de um imóvel em Miami. O gordo contracheque não seria suficiente, segundo ele, para a aquisição.

O outro motivo da punição a Saraiva, conforme o processo administrativo disciplinar aberto logo após a eleição presidencial de 2022, foi ele ter sido “desleal” com a PF ao “tentar destruir a reputação” de Maiurino. Na sequência da demissão, Saraiva deu entrevistas para expor o esquema de madeira e a tentativa de Salles de proteger os envolvidos. De quebra, culpava a direção da PF e o governo Bolsonaro pela degola. Agora, considera que sua punição é obra do “entulho bolsonarista” existente na corporação. Quer que o atual diretor-geral da corporação, Andrei Rodrigues, reconsidere a punição de 31 dias de suspensão. Coube a Rodrigues aplicar a pena sugerida no processo disciplinar. Se ele não voltar atrás, Saraiva pretende apelar ao ministro da Justiça, Ricardo

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Última Atualização: 01/08/2024