O telefone tocou no momento em que Lia Cecília da Silva Martins estava em uma consulta médica. Era a Polícia Federal. “Na hora, pensei: ‘Meu Deus, o que eu fiz?’”, relembra com uma risada nervosa. A assistente administrativa foi procurada para realizar uma coleta de material genético para um exame de DNA. Estranhou, porque a busca pela família biológica havia sido encerrada há mais de dez anos, quando os exames feitos à época foram inconclusivos. Mesmo hesitante, compareceu à delegacia na esperança de comprovar se o seu pai biológico é, de fato, Antônio Teodoro de Castro, militante do PCdoB que ingressou na Guerrilha do Araguaia e foi visto pela última vez por seus companheiros em 30 de dezembro de 1973.

Enquanto um motorista de aplicativo a conduzia à sede da PF em Belém, Lia Cecília só conseguia pensar na resolução do mistério que a atormenta há mais de 15 anos. “Tinha esperança de, finalmente, saber a verdade”, comenta. A expectativa aumentou ainda mais após conversar com peritos e policiais, que pouco depois divulgaram à mídia local a história da mulher que luta para confirmar a paternidade de um desaparecido político no regime militar. Ainda assim, estranhou o fato de não ter solicitado o exame.

Nem ela nem a família de Teodoro, que adotou o codinome Raul na guerrilha. Lia Cecília chegou a acionar o advogado que cuida do caso, mas ele não soube esclarecer a origem do pedido. Somente após a reportagem de CartaCapital buscar a resposta na sede da PF em Belém, no Ministério Público Federal e na rediviva Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, a direção-geral da Polícia Federal esclareceu que a corporação tem coletado amostras de DNA para consolidar o Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNFG), criado em 2013 para auxiliar na investigação criminal e na busca por pessoas desaparecidas. “Esse caso do Pará é mais uma ação nesse sentido.”

Há poucos meses, a PF anunciou que usaria o BNFG para auxiliar pessoas que foram adotadas e querem encontrar os familiares biológicos. Ao que tudo indica, Lia Cecília foi convidada a ceder uma amostra de DNA por ter sido adotada, não exatamente para confirmar a paternidade de Teodoro, como ela suspeita. “Em nenhum momento eles me deram a entender que não tinha a ver com a busca que eu já tinha iniciado. Agora nem sei o que pensar”, lamenta. A história da vida da assistente administrativa é marcada por informações imprecisas e capítulos mal contados. Existe essa suspeita sobre o possível pai, mas nenhuma pista de quem poderia ser sua mãe biológica. “Será que agora vou ter chance de encontrá-la? Eu gostaria muito de saber quem foi essa mulher.”

O Brasil nunca passou totalmente a limpo os crimes da ditadura, e isso deixou feridas abertas em centenas de famílias que não conhecem o paradeiro nem tiveram a chance de enterrar seus mortos. Para Amparo Araújo, ex-militante da Ação Libertadora Nacional, irmã e viúva de desaparecidos políticos, essa página não virada ainda adoece as gerações que vieram depois. “Ao longo da luta pela anistia e busca dos mortos e desaparecidos políticos, conheci e convivi com filhos e netos, sobrinhos e sobrinhas. Neles, essa crueldade de tamanho incomensurável se manifesta fortemente e com maior intensidade”, afirma Amparo, uma das coordenadoras do Comitê do Direito à Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco. “Há aqueles que assumem e carregam as bandeiras e as lutas, como uma forma de amenizar a profunda dor, e há os que renegam, se sentem roubados, rejeitados, magoados, com sequelas e transtornos variados, como depressão, angústia, sensação de abandono, infinito desconforto.”

Conselheira da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que havia sido extinta ilegalmente por Jair Bolsonaro e acaba de ser recriada, Diva Santana lamenta a falta de tato da Polícia Federal com o caso de Lia Cecília. “Ninguém foi informado sobre isso. Estamos há anos nessa busca e não ficamos sabendo de nada. Esse tipo de abordagem mexe muito com a pessoa, reabre feridas, é algo muito sério”, lamenta a ativista, irmã de Dinaelza Santana Coqueiro, que também participou da Guerrilha do Araguaia. “Por que nós, da Comissão, não ficamos sabendo? Nem a família do Teodoro foi informada? Tudo é muito estranho. A iniciativa de um banco de dados para pessoas adotadas encontrarem os pais biológicos é positiva, mas ninguém foi informado adequadamente sobre isso.”

A última vez que a família teve contato com Teodoro foi em 1970, quando ele se mudou para o Rio de Janeiro. Até então, era estudante de Farmácia na Universidade Federal do Ceará. Recém-filiado ao PCdoB, começou a ser perseguido pelo regime e o pai achou melhor afastá-lo. Por isso, pediu transferência para a UFRJ. Uma das irmãs, a professora Maria Eliana de Castro Pinheiro, recorda que, logo após a mudança, ele enviou uma carta, dizendo que pretendia se mudar para a Bélgica, porque havia conseguido uma bolsa de estudos. “Nos primeiros meses, chegavam cartas, ele contava novidades de lá. Passado um tempo, pararam as notícias.”

O pai, que sabia da militância política do filho, desconfiou desde o início da história, mas a mãe não fazia ideia de que ele era filiado ao PCdoB e custou a acreditar que o pacato estudante se tornasse um guerrilheiro. A certeza só veio em 1977. “A gente soube que o José Genoino estava preso em Fortaleza. Ele era amigo do meu irmão, e nós demos um jeito de ir visitá-lo na prisão. Eu estava grávida, foi uma situação muito difícil.” Sem se apresentar, ela perguntou se havia chance de algum guerrilheiro ainda estar vivo. “Possibilidade zero”, disse Genoino. “Implodiram tudo lá.” Então, o ex-comandante do Pelotão C parece ter notado a semelhança da moça com o companheiro Raul e preferiu guardar silêncio: “Você está grávida, não posso te contar mais nada”.

Teodoro atuou no Pelotão B, sob o comando de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, o mais destacado líder do Araguaia. Desapareceu no fim de 1973, e a data e o local de seu assassinato foram um mistério até 2009, quando o militar Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o Major Curió, decidiu abrir seus arquivos e confessar que ele próprio havia matado dezenas de jovens na região durante a Operação Marajoara. Ao ler a reportagem na revista Veja, Eliana acionou a sucursal em Brasília, foi atrás dos arquivos, que seguem sob segredo de Justiça, e descobriu que seu irmão era uma das vítimas. “Foi horrível ler aquela entrevista. Ele contou detalhes de como matou meu irmão e deixou lá para os bichos comerem.”

Como na infância, Lia Cecília adotou uma nova família, e hoje chama todos de “tios” e “tias”. Por um tempo, chegou a conviver com alguns deles em Fortaleza e Brasília. Mesmo sem o teste certeiro, ela acredita ser filha do guerrilheiro que lutou contra a ditadura, e se orgulha disso. Agora, com 50 anos recém-comemorados, embora a data de nascimento seja incerta, está prestes a se casar novamente. E começa a alimentar esperanças de ter pistas sobre sua mãe biológica. “A vida é assim, feita de recomeços, né? Bora ver no que vai dar.”

Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ferida aberta’.

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Última Atualização: 01/08/2024