A medicina é uma profissão que protege e salva vidas, mas também pode causar danos e até morte, pois os instrumentos utilizados podem ter efeitos nocivos e não controláveis.

As situações que vou descrever vão além da iatrogenia – patologias causadas pela prática médica. Elas se referem à dimensão ética do exercício da profissão.

– Uma médica neurologista raptou um bebê com 4 horas de vida da maternidade do hospital universitário onde leciona. O bebê, felizmente, foi encontrado pela polícia 11 horas depois.

– Médicos obstetras que atuavam na interrupção legal de gravidez indesejada de criança vítima de violência sexual foram ameaçados por políticos e usuários das redes sociais. Processados, correm o risco de ser impedidos de exercer a profissão.

– Empresários inescrupulosos contrataram atores que se passaram por médicos e pacientes, promovendo na tevê e nas mídias sociais tratamentos sem registro na Anvisa ou eficácia comprovada.

– Na pandemia, médicos prescreveram cloroquina e outras drogas sem evidência científica. Financiados por empresários bolsonaristas, espalharam fake news sobre a vacina contra a Covid-19.

– Uma criança precisava receber com urgência transfusão de sangue, mas os pais, por convicções religiosas, tensionaram a equipe médica a não intervir, colocando-a em risco.

– Médico que trabalhava no serviço ocupacional para uma empresa do agro deparou-se com exames periódicos dos empregados com altos índices de produtos cancerígenos de agrotóxicos.

– Uma médica recusou-se a cuidar de pacientes negros ou os tratou com descaso e rispidez. Era essa também a forma pela qual ela se relacionava com os membros da equipe de saúde que são negros.

– Médicos produziram laudos e atestados de óbito falsos e participaram de sessões de tortura na Ditadura, dando lastro aos torturadores na execução de violências físicas e mentais.

São situações que nos instigam a refletir sobre as questões éticas que se colocam na prática médica, a partir de princípios consagrados, como o respeito à autonomia, da não maleficência, de beneficência e da justiça.

Em busca da proteção de médicos e, principalmente, da população, o exercício ético-profissional da medicina é fiscalizado por órgãos públicos.

No Brasil, desde 1951, essa responsabilidade é atribuída, por lei, a uma autarquia federal, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que possui o papel de fiscalizar e normatizar a prática médica e é formado por dois médicos (um titular e um suplente) de cada unidade federada, eleitos por seus pares.

Na próxima semana, 514 mil médicos elegerão seus representantes. Desde 2013, quando forças conservadoras passaram a hegemonizar o movimento médico e controlar a maioria das suas entidades, em particular o CFM e os conselhos regionais, o pleito está mais e mais acirrado.

Em cada estado, diversas chapas foram inscritas e proliferam agressões e fake news. Mensagens enviadas via impulsionamento conclamam os médicos a não votar em quem, supostamente, fez o “L-13”. Até Luciano Hang, o “Veio da Havan”, virou cabo eleitoral de uma das chapas.

A pauta de costumes, o conservadorismo, o negacionismo e o ativismo político-partidário escamoteado campeiam na corporação médica, sob a liderança de médicos elitistas, privatistas e que boicotam o SUS.

Como médico e professor de Medicina há 35 anos, sou frequentemente instado a explicar por que parte significativa da “classe médica” assumiu posições tão conservadoras. Tento explicar que se trata de uma questão de classe.

O assalariamento pelas empresas médicas (muitas controladas por médicos) e a ampliação dos postos de trabalho no SUS têm alterado a configuração das relações de trabalho e gerado frustração nos que almejam a dimensão liberal da profissão.

Nada disso diminui a importância dos médicos. Tenho esperança de que minha categoria, tão imprescindível, retomará seu histórico compromisso social. A mobilização e a união dos médicos comprometidos com a democracia é uma realidade.

O ingresso, nas universidades, de alunos oriundos das escolas públicas e pelo sistema de cotas produz mudanças profundas na composição da corporação. Além disso, a formação de médicos de família e comunidade aproxima-os da realidade social e da desigualdade que precisa ser superada.

Quem sabe voltemos, em breve, a contar com um CFM que cumpra seu papel, fundamental para os médicos e, principalmente, para a saúde e a proteção da população. •

Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma questão de classe’

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Última Atualização: 01/08/2024