Em seu álbum mais melancólico, Caetano Veloso, produzido no exílio em Londres e lançado em 1971, o artista interpreta, na terceira faixa do lado A do disco, cantado quase todo em inglês, Maria Bethânia. Na canção, de sua autoria, ele pedia que a irmã enviasse, por carta, notícias do Brasil.
Berré – apelido que Bethânia tinha na infância –, havia, nesse mesmo ano, lançado o álbum A Tua Presença. No disco, gravado em estúdio, ela canta Mano Caetano, composta especialmente por Jorge Ben Jor para lembrar o amigo então distante: Ele vem sorrindo, ele vem cantando/ Ele vem feliz, pois ele vem voltando/ Lá vem o mano Caetano.
Caê, o mano de Berré, retornaria ao País no ano seguinte e produziria Drama – Anjo Exterminado (1972), considerado por muitos o melhor registro fonográfico da cantora. O trabalho traz aquela que é a primeira composição gravada assinada pelos dois, Trampolim, e marca também o início da exploração da aura teatral da intérprete, capaz de modular sua intensa voz em diferentes tons e cores. Nesse mesmo ano, Caetano lança o emblemático Transa.
Quatro anos depois, os dois irmãos se juntariam aos amigos Gilberto Gil e Gal Costa (1945-2022) para formar o grupo que deu origem ao disco Doces Bárbaros – Ao Vivo (1976), um enredo musical livre e profícuo, de quatro artistas que, apesar da pouca idade, já eram considerados brilhantes.
Em 1978, Caetano e Bethânia voltariam a sair juntos em turnê, mas só os dois. A turnê começou tímida, mas cresceu, e o show ganhou um registro fonográfico, composto de músicas de sucesso e de lembranças da infância: Maria Bethânia e Caetano Veloso ao Vivo.
Foi com a capa desse disco nas mãos que, no início de julho, Caetano, 81 anos, e Bethânia, 78 anos, postaram nas redes sociais uma foto na qual apareciam juntos. Com o roteiro do espetáculo em construção, o post perguntava, deixando a resposta no ar, se alguma canção do disco de 1978 entraria no setlist dos shows anunciados em março.
A reposta começará a ser dada no sábado 3, data de início da turnê que começa pelo Rio de Janeiro e vai percorrer, até o fim do ano, estádios e grandes palcos de dez capitais do País, com o público total pagante, até o momento, de mais de 320 mil pessoas.
Não é difícil apostar que a grandiosa turnê Caetano&Bethânia terá como repertório majoritário o período que vai do reencontro musical dos irmãos, em 1972, até o fim do decênio. O período foi, inclusive, o mais exuberante de ambos na música.
Nos anos 1970, eles lançaram discos estonteantes. Caetano gravou Qualquer Coisa (1975), Bicho (1977) e Cinema Transcendental (1979). Já Bethânia, Pássaro Proibido (1976), Álibi (1978) e Mel (1979).
Já no início da carreira, Caetano compunha para ela. Foram, até hoje, mais de 30 canções
No início da década anterior, ainda em Salvador, Caê e Berré davam juntos os primeiros passos na arte musical, nos shows Nós, por Exemplo e Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova, com a participação de Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé.
Em fevereiro de 1965, Bethânia, acompanhada de Caetano, desembarcou no Rio de Janeiro para substituir a cantora Nara Leão no espetáculo músico-teatral Opinião. Com uma interpretação marcante e arrebatadora, onde pôde mostrar toda a sua verve dramática, a baiana inaugurava sua reluzente carreira profissional.
Nesse mesmo momento, ela lançava Maria Bethânia (1965), seu primeiro álbum, e dois compactos, um deles sobre a obra de Noel Rosa (1910-1937). Nessas gravações, já apontava seu interesse no cancioneiro tradicional.
Caetano, enquanto isso, mostrava-se inquieto, envolvendo-se em um processo criativo engajado, que desaguaria na Tropicália, movimento do qual a irmã não quis participar. As diferenças poderiam sugerir uma divergência entre ambos, mas a separação foi mesmo de estilo.
A ligação musical dos irmãos aos olhos do público, nesse período, deu-se por meio de sete composições de Caetano gravadas por Bethânia em três álbuns solo de estúdio, de 1965 a 1971, com a cantora já trilhando o caminho das músicas sentimentais e românticas, que marcariam sua trajetória.
Os irmãos de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, não são uma dupla musical, mas se interligam organicamente desde o processo de criação musical até a representação no palco.
Desde o início da carreira, em Salvador, Caetano Veloso pôs-se a fazer música para que a irmã as cantasse. Foram mais de 30 canções feitas sob medida ao longo da carreira.
O artista possui uma forma múltipla de compor, caracterizada por ideias sensoriais e imagéticas, com estruturação melódica e rítmica penetrante. Mas ganhou uma parcela do reconhecimento composicional poético a partir da voz monumental da irmã, em canções como Tigresa, O Quereres, A Tua Presença, Morena, Motriz, Sete Mil Vezes e Reconvexo.
Nos caminhos dessa irmandade une-se também o profundo sentimento de brasilidade, onde se entrelaça a fé de ambos, exposta tão bem por Maria Bethânia no álbum Brasileirinho (2003), em um passeio por canções – inclusive do irmão – do Brasil profundo e sincrético.
Caetano, mais agudo, no seu último lançamento, Meu Coco (2021), mostra um Brasil perturbador, mas esperançoso. Na faixa que fecha o disco, Noite de Cristal, feita por ele para Bethânia gravar – o que aconteceu no álbum Maria (1988) –, ele atendeu a um pedido dela de regravação. Diz a letra: Dias de outras cores/ Alegrias/ Para mim/ Pro meu amor/ E meus amores.
Os filhos de Dona Canô são convergentes. A turnê deve enfatizar essa simbiose – ao menos, ao olhar do público, que terá à sua frente uma história de quase 80 anos de convivência profunda e riquíssima. •
Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A volta dos dois irmãos’