Duas semanas atrás, uma frase retirada de contexto gerou um atrito entre Nicolás Maduro e Lula. Agora, a declaração ganha ares de presságio. “Se não quiserem que a Venezuela caia em um banho de sangue, em uma guerra civil fratricida, produto dos fascistas, garantamos o maior êxito, a maior vitória da história eleitoral do nosso povo”, pediu Maduro, em linhas gerais, durante um comício na periferia de Caracas, 11 dias antes das eleições. Os venezuelanos não deram ao atual presidente uma vitória esmagadora. Longe disso. Em um processo confuso, opaco, contestado pela oposição e posto sob suspeita pela comunidade internacional, Maduro foi declarado vencedor na madrugada da segunda-feira 29 com pouco mais de 51% dos votos, após um alegado apagão do sistema eleitoral, fruto de ataque hacker, segundo o governo, e quando ainda faltavam 20% das urnas a serem contabilizadas. Principal adversário, o ex-embaixador Edmundo González obteve, de acordo com o Conselho Nacional Eleitoral, 44%, e o restante foi distribuído entre os candidatos nanicos. Na terça-feira 30, sem apresentar os mapas de votação solicitados por opositores, observadores independentes e aliados “reticentes” como o Brasil, a Colômbia e o México, e sem maiores explicações, Maduro foi diplomado presidente. Cumprirá a partir de janeiro, caso a situação interna não fuja do controle e o deixe em uma posição insustentável, um terceiro mandato de seis anos. Em 2030, na hipótese de se dar por satisfeito, terá completado 17 anos no comando da Venezuela.
As próximas horas serão decisivas. O “banho de sangue” passou de retórica de campanha a probabilidade nada desprezível. As desconfianças em relação à lisura da eleição, reforçadas pelo afã na diplomação, alimentam as fantasias e teorias da conspiração, de um lado e de outro. González e sua mentora, Maria Corina Machado, alegam ter provas da vitória esmagadora da oposição, com cerca de 70% dos votos. Circulam apurações “independentes” tão “confiáveis” quanto os números oficiais. Manifestantes insatisfeitos com o resultado enfrentam, desde a segunda-feira 29, as forças policiais nas ruas de Caracas e de outras cidades importantes. Cenas da derrubada de estátuas de Hugo Chávez país afora correm o mundo e inspiram comparações com a “Primavera Árabe” ou a derrocada dos regimes comunistas no século passado. Em resposta, Maduro convocou os apoiadores a ocupar as calles em defesa do governo, enquanto as forças policiais intensificavam a repressão a quem contesta os resultados. Cidadãos estrangeiros foram instruídos pelas respectivas embaixadas a não sair de casa e companhias aéreas cancelaram os voos para Caracas. Como costuma acontecer em momentos de instabilidade aguda, anda difícil identificar os restos da verdade factual nos escombros da manipulação. Os relatos sobre o número de mortos nos confrontos são imprecisos: foram sete, quatro, onze, dezesseis? Trata-se, conforme a oposição, de um movimento popular espontâneo ou, como sugere o procurador-geral, o chavista Tarek William Saab, de uma manobra orquestrada e financiada para desestabilizar Maduro e “tentar banhar o país de sangue”?
A diplomação menos de 48 horas após o anúncio do resultado oficial fez crescer a desconfiança
Infelizmente, o presidente venezuelano tem feito bem menos do que o necessário, ou praticamente nada, para elucidar as dúvidas em relação ao processo eleitoral e apaziguar os ânimos. Ao contrário, Maduro optou pelo choque. Na terça 30, em meio à agitação popular, o mandatário fez três pronunciamentos. “O fascismo não passará, não chegará, não retornará”, garantiu na tevê. Mais tarde, diante de milhares de chavistas nas imediações do Palácio Miraflores, sede do governo, prometeu reagir aos protestos. “Responsabilizo González Urrutia por tudo o que está acontecendo. Chegou a hora da justiça.” No dia seguinte, em entrevista a correspondentes estrangeiros, foi mais incisivo. “Se você pergunta a minha opinião como cidadão, digo a você que essa gente (Corina Machado e González) tem de estar atrás das grades (…) Te diria como chefe de Estado que haja justiça e que eles deveriam, em vez de se esconder, apresentar-se ao Ministério Público e dar a cara a tapa”. Na sequência, pediu à Corte Suprema do país o reconhecimento do resultado eleitoral.
Maduro confia na Justiça, escolhida a dedo por ele. E tem a seu favor o mais sólido suporte que uma das partes poderia desejar em um momento de ruptura. Em meio aos confrontos, as forças armadas e policiais reafirmaram a lealdade irrestrita ao presidente. “Estamos simplesmente na presença de um golpe de Estado novamente inventado por fascistas da direita extremista, apoiados por agentes imperialistas, os americanos e seus lacaios”, declarou Vladimir Padrino López, ministro da Defesa, circundado pelos comandantes militares. Embora os eleitores chavistas tenham atendido ao chamado e inundado as ruas em defesa do presidente, a longevidade de Maduro deve-se mais ao apoio das casernas do que à mobilização popular.
A escalada da tensão interna complica os esforços internacionais de mediação. Na terça-feira 30, Lula e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, trataram por telefone das eleições venezuelanas. Os dois concordaram com a necessidade de uma rápida divulgação dos mapas de votação. Pela manhã, antes da conversa com o homólogo norte-americano, o petista, em entrevista a uma afiliada da Rede Globo em Mato Grosso, manteve a cautela adotada pela diplomacia brasileira. “Tem uma briga, como vai resolver essa briga?”, perguntou. “Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida entre oposição e situação, a oposição entra com recurso e vai esperar na Justiça. Aí vai ter a decisão, que a gente tem de acatar. Eu estou convencido de que é um processo normal, tranquilo.” As linhas finais da declaração de Lula, sobre a normalidade das eleições, parecem influenciadas pelas informações colhidas in loco por Celso Amorim, assessor especial para Assuntos Internacionais. O ex-chanceler passou quatro dias em Caracas, acompanhou a reta final da campanha e o dia de votação e obteve de Maduro e de outras autoridades a promessa de que os boletins serão divulgados em breve. Amorim também se reuniu com González antes de retornar ao Brasil, na tarde da terça-feira 30. Voltou para casa cheio de dúvidas. Ainda em solo venezuelano, resumiu desta forma o imbróglio: “Sou amigo de César, mas sou amigo da verdade. Estou procurando a verdade”.
Tarefa complexa, talvez inglória. Pedro Silva Barros, ex-chefe do escritório em Caracas do Ipea, vinculado ao Ministério do Planejamento, acredita que a demora do governo Lula em recompor a missão diplomática na Venezuela, após o rompimento promovido por Jair Bolsonaro, deixou o Brasil desprovido de informações seguras e à mercê dos boatos e da avaliação de terceiros. A atual embaixadora no país, Gilvânia Maria de Oliveira, só entregou as credenciais ao Ministério das Relações Exteriores venezuelano em fevereiro passado e a estrutura de inteligência da embaixada não foi totalmente remontada. Apesar disso, ou até por isso, Barros considera acertada a posição cautelosa de Brasília e critica quem defende uma ruptura com o vizinho para evitar o desgaste da imagem de Lula entre os brasileiros. “Qualquer país do nosso tamanho não pode submeter a política externa exclusivamente aos ditames da política interna. A nós não interessa um Maduro autoritário nem uma guerra civil. Interessa a mediação.”
O Brasil e outros aliados continuam a cobrar a divulgação completa das atas eleitorais. A esta altura, basta para apaziguar os ânimos?
Interessa também descobrir qual a mediação possível a esta altura. O Brasil insiste na divulgação dos boletins eleitorais, mas, passadas tantas horas, é o caso de perguntar se a simples liberação das atas será suficiente para eliminar as suspeitas de fraudes ou se produzirá o efeito contrário, colocar mais lenha na fogueira. O fato de Maduro ter vencido, segundo o CNE, não prova, como quer fazer crer a oposição, certos organismos internacionais e parte da mídia, a ilegalidade do processo. Ao mesmo tempo, o grau de contestação dos resultados, dentro e fora do país, não confirmam, como insistem os chavistas, a existência de um conluio para derrubar o governo a todo custo e de forma ilegítima. Em 2018, quando disputou o segundo mandato, Maduro superou as desconfianças e tomou posse ao permitir maior presença de observadores externos e garantir a transparência da apuração. Sua vitória confortável, 67,85%, limitou a controvérsia às hostes oposicionistas, dividida sobre a melhor estratégia de enfrentamento ao chavismo, se por meio do boicote ou de participação no processo.
As experiências anteriores valeram, porém, muito pouco, bem como a expectativa criada pela assinatura dos Acordos de Barbados, mediados pela Noruega, em outubro passado. Os acordos nasceram de circunstâncias bem específicas. A guerra na Ucrânia obrigou os Estados Unidos a buscarem alternativas ao fornecimento de petróleo e gás. A melhor, se não a única, opção era recorrer ao “vilão” Maduro, sentado na maior reserva de óleo do planeta. Havia, porém, um empecilho, o embargo econômico à Venezuela imposto por Washington em apoio à patética tentativa de golpe de Juan Guaidó. O autoproclamado presidente não resistiu ao tempo e ao ridículo, mas os embargos continuaram de pé. Até outubro. Os EUA aceitaram derrubar parte do bloqueio financeiro em troca de um acordo entre o governo e a oposição que garantisse eleições “livres e justas”. Estabeleceu-se o calendário, o segundo semestre deste ano, e a lista mínima de observadores internacionais, formada pela União Europeia, o Centro Carter e a Organização das Nações Unidas.
O jogo foi zerado, certo? Mais ou menos. Em dezembro, dois meses após o sim em Barbados, o CNE cancelou o convite à UE. Segundo o governo da Venezuela, a decisão do Parlamento Europeu de estender os embargos ao país até 10 de janeiro de 2025, data da posse do presidente eleito, tinha o objetivo de interferir no processo eleitoral em favor da oposição.
Em janeiro, Maduro declarou que os acordos estavam “feridos de morte, em terapia intensiva, apunhalados, chutados”, em consequência de uma suposta conspiração da CIA e da DEA para assassiná-lo. A declaração foi a senha para o órgão eleitoral venezuelano testar os limites do arranjo. A oposição passou a denunciar dificuldades em registrar candidaturas, perseguições e prisões, embora as denúncias tenham sido conspurcadas por uma farsa. Convertida em principal opositora por W.O. dos concorrentes, Maria Corina Machado, ligada à extrema-direita europeia e latino-americana, estava ciente da sua inelegibilidade ao tentar o registro da candidatura presidencial. Queria produzir um factoide e conseguiu. A indicação de uma substituta, a filósofa Corina Yoris, igualmente barrada pelo CNE, rendeu uma das primeiras rusgas entre Maduro e Lula. Yoris foi proibida de disputar por motivos triviais, nem ela nem o movimento que integrava, o Vente Venezuela, tinham registro para participar da disputa. Mais uma vez, a oposição denunciou o cerceamento aos seus direitos políticos e mais uma vez o presidente brasileiro reagiu ao noticiário. “Primeiro, é boa a decisão de a candidata proibida pela Justiça indicar uma sucessora. Achei um passo importante”, afirmou Lula. “Agora, é grave que a sucessora não possa ter sido registrada. Ela não foi proibida pela Justiça. Me parece que ela se dirigiu até o lugar, tentou usar o computador e não conseguiu entrar.”
Semanas depois de assinar o acordo e à procura de uma bandeira de união nacional, Maduro ressuscitou uma contenda esquecida, do século XIX, com a Guiana. A Venezuela reivindica a posse de Essequibo, uma porção do território guianense do tamanho aproximado do Ceará e rico em petróleo. A postulação extemporânea criou um novo polo de conflito na América do Sul, levou os Estados Unidos, cujas petroleiras atuam na região, a mobilizar tropas no local e atraiu o Brasil, que faz fronteira com os dois países, para o centro de uma polêmica desnecessária. A Corte Internacional de Justiça aconselhou o governo venezuelano a não prosseguir com um plebiscito, mas a recomendação acabou ignorada. Mais de 95% dos venezuelanos que compareceram às urnas votaram a favor da anexação. O efeito prático é zero, mas a reivindicação serviu à campanha eleitoral. “Trata-se de um referendo histórico que colocou a Venezuela de pé e agora é hora de recuperar o que os libertadores nos deixaram”, comemorou Maduro.
O país experimenta recuperação econômica, mas a base de comparação é muito baixa. Em uma década, o PIB encolheu 62%
O presidente venezuelano também testou os limites do acordo ao agendar as eleições para o fim do primeiro mês do segundo semestre, a mais de 150 dias da posse. Maduro, tudo leva a crer, queria aproveitar o melhor momento dos indicadores socioeconômicos do ano para conquistar o eleitorado indeciso. A dolarização da economia, que às vezes produz milagres no curto prazo e sempre tragédias no longo, associada à redução dos embargos dos Estados Unidos, deu impulso ao PIB. Desde o fim da pandemia de Covid-19, a Venezuela registra um crescimento médio de 5% ao ano. A inflação está sob controle, os produtos básicos, antes escassos, voltaram às gôndolas dos supermercados e há uma recuperação da renda do trabalho. A base de comparação é, porém, muito deprimida. Antes de recolocar o nariz um pouco acima da linha d’água, a economia venezuelana experimentou um longo mergulho. Em uma década, sob o comando de Maduro, o Produto Interno Bruto registrou uma queda brutal, de 62%, calculam especialistas. Quase 8 milhões de venezuelanos deixaram o país em busca de melhores condições de vida e para fugir da fome e da pobreza extrema. A dependência do setor petrolífero local ao mercado norte-americano tornou mais profundo e dramático o efeito do bloqueio imposto por Washington. A interferência dos EUA explica boa parte das dificuldades econômicas, mas não todas. O chavismo, mesmo nos melhores momentos, foi incapaz de cumprir a promessa de diversificação da economia. O país continua prisioneiro da maldição do petróleo, dependente das oscilações dos preços internacionais, e vítima da chamada “doença holandesa”, situação peculiar na América Latina que levou Celso Furtado a cunhar a expressão “subdesenvolvimento com abundância de divisas”. Some-se a isso a má gestão da PDVSA, a estatal de petróleo. China e Rússia se aproximaram da Venezuela no período mais violento do bloqueio ocidental, mas o aumento das relações comerciais ficou aquém das necessidades.
A pressão internacional continua. Na quarta-feira 31, depois de deixarem a Venezuela, os observadores do Centro Carter, um dos organismos internacionais chancelados pelos Acordos de Barbados, declararam que a eleição não pode ser “considerada democrática”. Segundo os representantes da ONG sediada em Atlanta, na Geórgia, o processo “não atingiu os padrões internacionais de integridade eleitoral em nenhuma das suas fases relevantes e violou numerosos preceitos da própria legislação nacional”. No mesmo dia, Gustavo Petro, presidente da Colômbia insuspeito de golpismo ou de aliança com a extrema-direita, expôs suas objeções ao sufrágio. “As sérias dúvidas que se estabelecem em torno do processo eleitoral venezuelano podem levar o seu povo a uma profunda polarização violenta, com graves consequências de divisão permanente de uma nação que soube se unir muitas vezes na sua história”, escreveu na rede X. “Convido o governo venezuelano a permitir que as eleições terminem em paz, possibilitando um escrutínio transparente com contagem de votos, atas e supervisão por todas as forças políticas do seu país e supervisão internacional profissional.” Petro sugeriu ainda um acordo entre o governo e a oposição em torno de uma declaração conjunta, extirpadas as dúvidas, a ser entregue ao Conselho de Segurança da ONU. Gabriel Boric, presidente do Chile, foi, de hábito, mais contundente. Negou-se a reconhecer a vitória de Maduro se os números não puderem ser verificados e pediu “total transparência” e a “confirmação por observadores internacionais”. Até uma declaração de Pepe Mujica, de fevereiro, voltou a circular. Segundo o ex-mandatário do Uruguai e ícone da esquerda mundial, Maduro pode “ser chamado de ditador”.
Até o fechamento desta edição, na manhã da quinta-feira 1º, o presidente da Venezuela continuava mais preocupado em impor autoridade, em ganhar no grito, do que em esclarecer as dúvidas a respeito do processo eleitoral. Os protestos não param. Maduro permanece preso no labirinto no qual se meteu. Para muitos críticos, o país é hoje uma caricatura do “socialismo do século XXI” imaginado por Hugo Chávez, entregue a uma oligarquia distante do povo e subjugado por uma estrutura policial-militar. Quanto maior o isolamento, maior a probabilidade de se ceder à tentação autoritária. Neste último caso, uma outra caricatura, a do ditador sul-americano, se tornaria real. •
Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O labirinto de Maduro’