No palco montado sobre o antigo terreiro de café da Fazenda São José dos Pinheiros, em Pinheiral (RJ), cidade rodeada de verde e cortada por uma ferrovia, mestre Jefinho, de Tamandaré (SP), pega o microfone e diz:

— A gente só tá aqui porque os nossos tataravós fizeram rodas de dança, e fizeram neste lugar aqui. Se engana quem chega numa roda nossa e acha que a gente tá só dançando. A dança é uma forma de luta.

A fala ecoa outras tantas ouvidas no 3º Encontro de Danças, realizado no sábado 27, defronte às ruínas daquela que foi uma das maiores fazendas de café do Vale do Paraíba fluminense no século XIX. O evento reuniu cerca de 400 lideranças quilombolas de 18 comunidades do Rio e de São Paulo que fizeram um cortejo, cantaram, dançaram e tocaram tambores. Mestra Memeia, no mesmo palco, lembrou:

— Temos aqui famílias que são descendentes diretas de escravizados que trabalharam aqui.

As questões ligadas à memória e aos direitos de reparação são o pano de fundo do projeto ali anunciado: a criação, naquele pedaço de terra, de um parque temático sobre a história do negro no Vale do Café.

Não muito longe dali, em cidades como Vassouras, Valença e Barra do Piraí, acontecia, no mesmo fim de semana, o Festival Vale do Café, que celebra a memória dessa que foi uma das regiões mais opulentas da época do Império.

Na programação, as referências a barões e viscondes misturavam-se à descrição da arquitetura das casas-sede, com seus “belos jardins”, e de objetos originais, como bengalas, cartolas e porcelanas.

É a esse turismo da casa-grande que os dançarinos esperam, a partir do Parque das Ruínas, fazer frente. “Queremos criar um roteiro afro que bata de frente com o roteiro das fazendas”, diz, de forma direta e ao mesmo tempo suave Maria de Fátima da Silveira Santos, a mestra Fatinha, irmã de Memeia.

Durante a entrevista, ela recorda-se de que, em 2017, uma fazenda de Vassouras chegou a ter de assinar um termo de ajustamento de conduta (TAC), proposto pelo Ministério Público Federal, por colocar pessoas negras, vestidas como escravas, para servir o chá aos turistas.

“Se engana muito quem chega numa roda nossa e acha que a gente tá só dançando. A dança é uma forma de luta”, diz mestre Jefinho

Fatinha, Memeia e uma terceira irmã, Gracinha, foram criadas no jongo e do jongo fizeram sua missão. “Venho de uma família muito consciente sobre o que é ser negro”, diz Fatinha. “Em Pinheiral sempre se dançou o jongo: em casamentos, batizados, festas juninas, em todo lugar.”

Professora aposentada de Educação Física, Fatinha é uma das criadoras do Centro de Referência e Estudos Afro do Sul Fluminense (Creasf), fundado em 1998 com o objetivo de trabalhar o jongo em conjunto com a educação.

O Jongo do Pinheiral, além de espelhar a luta racial, carrega um pouco da história da constituição do patrimônio imaterial brasileiro e das políticas culturais voltadas às comunidades tradicionais. A Creasf ganhou o segundo edital do programa Cultura Viva, criado em 2004 pelo Ministério da Cultura.

Nesse mesmo ano, o jongo foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O conceito de patrimônio imaterial nasceu com a Constituição Federal de 1988 e foi regulamentado por meio um decreto de 2000.

Esse patrimônio, como explica Evandro Luiz de Carvalho, diretor do Departamento Imaterial do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, se constitui de uma série de saberes e fazeres que têm relação com a comunidade. “São práticas e saberes de caráter intangível, que se manifestam na performance. Ao vocalizar que tal prática é um patrimônio, você atribui valor a ela”, diz.

Paulo Vidal, superintendente regional do Iphan no Rio, que também esteve em Pinheiral, observa que, do valor simbólico, derivam outros: “O apoio a comunidades tradicionais gera emprego, movimenta a economia local, traz sentimento de pertencimento e mantém a população fora dos grandes centros. O prefeito falou que os hotéis da cidade estão lotados hoje”.

Protagonismo. “Queremos criar um roteiro afro que bata de frente com esse roteiro das fazendas”, diz mestre Fatinha, dançarina e ativista. Acima, uma fazenda em Vassouras (RJ) – Imagem: Redes sociais e Mônica Ramalho

O Parque das Ruínas foi uma das sete propostas premiadas no PAC Seleções do Rio, viabilizado com a Lei Paulo Gustavo. Os recursos servirão para a elaboração do projeto de criação do parque, que prevê restaurante, carro de boi, feira de produtos artesanais e alimentares, biblioteca, escola de dança e museu.

Para o superintendente do Iphan, o simbolismo desse projeto é imenso e insere-se em algo maior, que é o processo de institucionalização da memória da diáspora africana no Rio de Janeiro. A Fazenda São José dos Pinheiros, segundo ele, liga-se, por exemplo, ao Cais do Valongo, o porto que mais recebeu africanos escravizados das Américas.

“Mesmo após a abolição, a família Breves, dona da fazenda, seguiu traficando escravos”, conta. “A partir daí, em vez do Cais do Valongo, eles eram desembarcados em Mangaratiba, o local de chegada dos africanos trazidos ilegalmente.”

São histórias como essa que os dançarinos desejam tornar conhecidas. “Este parque vai contar o papel do negro na construção do Vale do Café e do próprio Brasil. A riqueza daquele período foi construída com o trabalho dos negros. Também queremos mostrar a potência da dança para o turismo étnico”, diz Marcos André Carvalho, idealizador do evento e ligado ao jongo do Morro da Serrinha, em Madureira.

As leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, que estabelecem cotas para minorias, são vistas por muitos como uma nova janela de oportunidade para projetos ligados às manifestações afro-brasileiras. •

Publicado na edição n° 1322 de CartaCapital, em 07 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A dança da memória’

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Última Atualização: 01/08/2024