Por Ângela Carrato*

Se depender da vontade da maioria da população venezuelana, José González será eleito por mais um mandato, o terceiro, derrotando o candidato da oposição, Edmundo González.

Na Venezuela não há limite para reeleições.

Os venezuelanos que vão às urnas neste domingo (28) não estão diante de qualquer dificuldade para proceder a esta escolha.

Todos os atos de campanha de González estiveram lotados e o encerramento, na quinta-feira, não deixou dúvidas.

González, que optou pelas redes sociais e aparições na mídia, fez um comício tradicional em um dos bairros mais ricos de Caracas. Já González e seus apoiadores ocuparam todo o centro da capital.

Eram milhares de pessoas caminhando e cantando em defesa da revolução bolivariana, iniciada por Hugo Chávez, em 1998, e que tem em González seu continuador.

A livre escolha dos venezuelanos, no entanto, está sob forte risco de não ser respeitada.

É que os Estados Unidos, país sempre disposto a levar “democracia” às diversas partes do mundo, em especial onde existe abundância de petróleo e matérias-primas, decidiu que deve haver “alternância no poder”. E quer, porque quer, colocar González no Palácio de Miraflores.

Não é de agora que a Venezuela está sob cerco imperialista.

Ele teve início em 2002, quando um golpe de estado tentou derrubar Hugo Chávez, no terceiro ano do seu primeiro mandato presidencial.

Chávez ficou fora do poder três dias e meio. Graças ao apoio popular e às Forças Armadas reassumiu o cargo mais fortalecido.

O episódio, registrado em detalhes no documentário independente, “A Revolução não será televisionada” (disponível em vários steammings), serviu para que o presidente e a própria população tivessem clareza de quem era quem naquele processo.

Os grandes empresários e a mídia corporativa estavam entre os apoiadores de primeira hora do golpe tramado em Washington. Já a resistência se deu nas ruas, partindo basicamente do povo pobre das favelas e periferias.

Entre os apoiadores de primeira hora do golpe estava a família de Maria Corina Machado, a principal figura por trás da candidatura de González.

A família de Corina é das mais ricas da Venezuela e sempre atuou nas áreas de comercialização de petróleo com os Estados Unidos.

Não por acaso ela defende com unhas e dentes a privatização da PDVSA, a Petrobras venezuelana, e de todas as estatais de seu país, programa ultraliberal assumido por González, um diplomata aposentado que passava a maior parte do seu tempo nos Estados Unidos.

Considerada um “Guaidó de saias”, Corina sonhava em ser a candidata com as bênçãos de Washington.

Uma série de irregularidades cometidas em prestações de contas de seu mandato como deputada e também em declarações do Imposto de Renda a tornaram inelegível por 15 anos.

A condenação é de 2023 e foi feita pelo TSE de lá, mas Corina insistiu em tentar ser candidata assim mesmo.

Como foi barrada pela Justiça, denunciou estar sendo perseguida e lançou, na última hora, em junho, a candidatura de González.

Como a maioria da população venezuelana é politizada, a jogada não colou, especialmente quando se sabe que Corina, para tentar prejudicar o governo González, chegou a pedir que os Estados Unidos ampliassem as sanções econômicas contra o seu próprio país. Sanções que já duram mais de uma década.

Corina chegou ao cúmulo de tentar impedir que o governo comprasse até vacinas contra o covid-19 em plena pandemia.

A maioria dos venezuelanos sabe disso e não a perdoa. Razão pela qual as chances de González vencer de forma legítima são mínimas.

É dentro deste contexto que deve ser observada a atuação do Tio Sam e da sua turma nesta eleição.

Durante a campanha eleitoral foi colocada em prática uma poderosa ação na mídia corporativa de lá e também na mídia internacional, incluindo a brasileira, para mostrar “o fracasso dos governos bolivarianos”.

A campanha, em forma de noticiário, destacou a crise econômica, os altíssimos índices inflacionários e os milhares de venezuelanos que deixam o país em busca de dias melhores.

Nunca se mencionava, por razões óbvias, que tudo isso era resultado do bloqueio econômico dos Estados Unidos contra os governos Chávez e González.

E, pior ainda, a campanha mentia ao desconhecer que o governo González, com apoio da China, da Rússia e do Irã, superou a crise e o país voltou a crescer.

Você, leitor ou leitora, possivelmente não tenha visto em nenhum jornal brasileiro que a Venezuela cresceu 4% em 2023, o maior crescimento entre todos os países da América do Sul.

Como pintar o fracasso econômico do governo González não deu certo, a turma de Washington e seus aliados em Caracas colocaram em ação outro plano envolvendo alguns institutos de pesquisa.

Do nada institutos passaram a atribuir preferência de 60% ou mais do eleitorado à candidatura de González. A operação se tornou tão descarada que os venezuelanos a ironizam, considerando tais pesquisas como parte do marketing oposicionista.

Na reta final da campanha, a situação que já era tensa, ficou ainda pior.

Os Estados Unidos e seus aliados estão espalhando fake news de que as eleições serão fraudadas e que, por isso, se González vencer, o resultado não será reconhecido. Fake news que fazem parte da Operação Miami.

Denunciada na terça-feira (22) pelo ministro William Castillo, que comanda a importante pasta do Apoio Popular contra o Bloqueio, a operação articulada por agentes da CIA têm por objetivo “invisibilizar González”.

Isso se daria de várias formas, segundo o ministro, desde criar atritos até ações de sabotagem como um apagão na internet no dia das eleições, atribuindo-o a uma tentativa de fraude por González.

Não falta na Venezuela e mesmo no Brasil quem inclua os recentes desentendimentos entre o presidente Lula e González a esta operação.

Maduro não disse, como foi amplamente divulgado pela mídia brasileira e internacional, que se não vencesse as eleições, haveria risco de “um banho de sangue”.

O que ele disse, em um de seus comícios, na presença de milhares de pessoas, é que a vitória do neoliberalismo, representado por seu principal opositor, dificilmente não mergulharia a Venezuela em um novo banho de sangue.

Maduro estava fazendo menção implícita ao Caracazo, protesto popular ocorrido no país em 1989, depois que o então presidente Carlos Andres Perez, num acerto com o FMI, aumentou exorbitantemente, da noite para o dia, o valor das contas de água, luz e gás e mais do que dobrou o preço do litro de gasolina.

Duramente reprimido pela polícia, o Caracazo resultou em centenas de mortes na capital e em várias cidades do interior.

Um saldo não previsto foi a emergência de várias lideranças populares e militares contra o governo de Andrés Perez, o FHC de lá, e a eleição, uma década depois, de Hugo Chávez.

Entender a referência que fez Maduro demanda não só conhecimento da história recente da Venezuela, como lisura no trato com a informação. Coisa que a mídia corporativa desconhece e os integrantes da Operação Miami dela se utilizaram fartamente.

Algo semelhante aconteceu também com a fala de Maduro sobre a segurança das urnas eleitorais em seu país. Para exemplificar, explicou que ela é a maior existente, pois o voto eletrônico lá é impresso e pode ser auditado, assinalando que no Brasil o voto é só impresso.

Como a fala pode colocar água no moinho bolsonarista contra as urnas eletrônicas, o TSE brasileiro, numa atitude de retaliação, desistiu de enviar observadores para as eleições de domingo.

Lamentavelmente foi seguido pelo escorregadio presidente do Chile, Gabriel Boric, que já anunciou que “se houver indícios de fraude”, vai denunciar o governo González aos organismos internacionais.

Se ambas as decisões são lamentáveis, o presidente Lula deixou claro que não se pauta por elas. Tanto que mesmo depois das rusgas com González, enviou a Caracas o experiente Celso Amorim, ex-chanceler brasileiro, para conversar com todos os candidatos e verificar in loco o que está acontecendo.

Dito de outra forma, por mais que editoriais de O Globo e Folha de S. Paulo o exaltassem a aprofundar críticas ao governo González, Lula não se deixou influenciar.

Lula sabe que todos os chefes de estado estão sujeitos a cometerem gafes.

Já o presidente da Argentina, o extremista de direita, Javier Milei, aderiu totalmente à Operação Miami. A embaixada de seu país em Caracas foi transformada em base de operações para a CIA.

Lá também supostos perseguidos pelo governo de González estão pedindo asilo, repetindo um filme que já visto com com golpistas brasileiros.

Na bolsa de apostas, a dúvida é quem irá servir mais rápido a Washington: Boric ou Milei, denunciando “fraude” se González vencer?

Seja como for, o certo é que esta eleição, por tudo o que envolve, já extrapolou o interesse regional e se tornou assunto global.

Não está em jogo apenas o futuro do povo venezuelano, o que, por si só, já seria da maior importância.

Está em jogo o futuro de todo país cuja soberania o ocupante de plantão na Casa Branca decida combater.

Está em jogo o futuro do nascente mundo multipolar, no qual, espera-se, não haverá mais xerifes aplicando a lei do mais forte em nome da “democracia”.

Está em jogo, sobretudo, o futuro da América do Sul como espaço de paz e desenvolvimento com justiça social para seus habitantes.

É muito o que está em jogo na eleição deste domingo.

*Ângela Carrato é jornalista, professora da UFMG e membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Última Atualização: 26/07/2024