O governo fechou a própria porta, ou seja, reduziu o gasto público destinado a melhorar a vida dos mais pobres, e também diminuiu o ganho dos pobres diretamente, com o imposto das “blusinhas”, mas não tomou essas decisões por conservadorismo, como aponta o fogo amigo. O corte foi imposto pelo excesso de subsídios e desonerações concedidos a empresas e a indivíduos ricos, disse o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, na apresentação à imprensa do “Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias” do terceiro bimestre, na segunda-feira 22. Não houve, e não há, força política suficiente para reverter ao menos parte das desonerações, isenções e benefícios escandalosos de 400 bilhões concedidos durante décadas aos mais ricos sem qualquer retorno para a sociedade, segundo cálculo da Unafisco.

O relatório confirma o bloqueio de 11,2 bilhões de reais de aumento em despesas obrigatórias e a limitação de empenho, ou contingenciamento, de 3,8 bilhões. Os ministérios das Cidades e dos Transportes devem ser os mais afetados pelas reduções, que afetarão investimentos. Gastos de 6,4 bilhões, acima do previsto, com o Benefício de Prestação Continuada, devido ao aumento de requerimentos novos, e a variação dos desembolsos com benefícios previdenciários, de 4,9 bilhões, levaram ao bloqueio.

A variação de despesas obrigatórias, de 14,2 bilhões, contém os desembolsos para a emergência climática no Rio Grande do Sul, que foram consideradas despesas obrigatórias e tiveram peso decisivo na evolução das despesas primárias, de 20,7 bilhões, sublinhou o secretário de Orçamento Federal substituto, Clayton Luiz Montes.

A decisão do governo de cortar gastos provocou uma mudança de tom dos agentes do sistema financeiro, das ameaças de elevação dos juros antes do anúncio dos cortes no Orçamento, para previsões de provável estabilidade nos exorbitantes 10,5% ao ano atuais. Segundo o noticiário econômico nativo, a iniciativa governamental “está muito longe do ideal, mas atenua um pouco o risco de ruptura na gestão das contas públicas” e proporciona “maior tranquilidade ao Copom antes de sua próxima reunião”. Antes dos cortes, a decisão mais provável era de alta dos juros básicos, risco não eliminado, mas menos provável neste momento.

Na origem dos memes contra Haddad, a revolta empresarial contra a “fúria tributária”

A mídia deixa claro que se trata de uma trégua provisória, apesar de não existir razão objetiva para a beligerância permanente, além do interesse do setor financeiro e do empresariado de não abrir mão de benesses governamentais. O presidente Lula disse que fará bloqueios no Orçamento “sempre que precisar” e que traz responsabilidade fiscal “nas entranhas”. É importante ressaltar que nos seus dois mandatos anteriores, Lula entregou as contas com superávit de 4% do PIB em média.

Ao contrário do que busca mostrar a ladainha midiática, de que haveria um exagero nos gastos, a despesa primária mantém-se sob controle, no patamar de 19,4% do PIB, em relação à média de 19,2% desde 2015, observa Montes. Para evitar distorções, a média desconsidera o ano anômalo de 2020, quando a despesa primária atingiu estratosféricos 25,6% do PIB, devido à gastança eleitoreira do governo Bolsonaro, uma herança maldita para a gestão de Lula.

A verdade factual é que a despesa pública apresenta estabilidade na década, em que pese o aumento da incerteza, com uma ligeira queda em relação ao ano anterior, refletindo um ajuste natural e gradual possibilitado pelo marco fiscal, frisa o secretário do Tesouro, Rogério Ceron. A perspectiva de melhora do crescimento e o aumento da massa salarial com inflação controlada vem sendo perseguida e conquistada e isso é muito importante: “Há um ambiente econômico muito saudável, com estabilidade e previsibilidade. Isso garante que as coisas vão continuar bem”.

Ceron ressaltou números do cenário fiscal, “para trazer um pouco de racionalidade para o debate”. As expectativas sobre o resultado primário do acumulado de 2024, 2025 e 2026 no fim de 2022 eram de mais de 2% do PIB, de déficit acumulado nesses três exercícios. Em dezembro de 2023, as expectativas tinham caído para 1,9% do PIB e no fim de abril, mesmo depois das alterações do ajuste em relação às metas fiscais para os exercícios de 2025 e 2026, elas continuaram em 1,9% do PIB no acumulado e continuam nesse patamar. “Há uma ancoragem dos resultados fiscais primários esperados, não há um descolamento das expectativas.”

O outro lado dos cortes orçamentários, dentro da política fiscal, é a tentativa de recomposição de receita tributária, uma estratégia definida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, desde o começo do ano passado. O centro da recomposição de receitas são os 400 bilhões de reais em benefícios aos ricos, sem retorno social, mencionados acima. Essa estratégia foi torpedeada, em junho, por empresários e rotulada como “fúria arrecadatória”, uma onda que prosseguiu, nas últimas semanas, sob a forma de memes contra o ministro Haddad, apresentado como “Taxadd”.

Navalha. Os cortes atingem mais os ministérios dos Transportes e das Cidades – Imagem: Acácio Pinheiro/Agência Brasília

A revolta de junho ocorreu diante da Medida Provisória apresentada pelo governo para recuperar 20 bilhões de reais suprimidos irregularmente da arrecadação do PIS/Cofins, para preencher o buraco na receita tributária provocado pela desoneração de 17 setores da economia. A MP durou uma semana e foi derrubada após uma pressão drástica de confederações empresariais, mobilizadas pelas falas ásperas de Rubens Ometto, presidente da Cosan, um conglomerado do agronegócio, que atacou a Fazenda e citou, entre outros atos governamentais, a mudança no crédito do PIS/Cofins.

Segundo a Fazenda, a isenção indevida gerava, em alguns casos, uma situação de tributação negativa, isto é, o governo passava a ser devedor e tinha de pagar uma espécie de subvenção em dinheiro, no ressarcimento desses créditos, que representam 20 bilhões de reais. Pior, o governo descobriu que algumas empresas recolhiam a contribuição previdenciária dos empregados, de 11% sobre o salário, e o Imposto de Renda na fonte, e não repassavam à Receita Federal, pois ficavam com o dinheiro.

A tempestade de memes incluiu imagens projetadas em um telão da Times Square, em Nova York. Um estudo elaborado pela plataforma Política nas Redes, produzido pela equipe do Manchetômetro, no Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública da Uerj, identificou a prevalência da direita, com protagonismo das páginas de Kim Kataguiri, Carla Zambeli e Mário Frias, na veiculação dos memes. Na maré do Taxadd, ressuscitaram o arcaico impostômetro da Associação Comercial de São Paulo, para alegria dos sonegadores.

As expectativas sobre o resultado primário acumulado de 2024 a 2026 caíram de mais de 2% do PIB, no fim de 2022, para 1,9%

Sobre o resultado fiscal, acrescenta Barreirinhas, é importante ressaltar que as receitas atingiram as metas de junho, e a arrecadação foi boa, com um aumento real de 11,2% em relação ao mesmo mês do ano passado. A arrecadação “vai muito bem”, mas é inferior ao necessário, por conta de algumas desonerações e frustrações de receitas.

“Houve um aumento do Imposto de Renda da contribuição social sobre lucro líquido, até pelo histórico dos meses anteriores, mas compensada negativamente por uma frustração da receita de PIS/Cofins em relação ao previsto no Orçamento. A arrecadação do PIS/Cofins está forte este ano, mas aquém do inicialmente previsto.” Os motivos, detalhou Barreirinhas, são o histórico do período anterior e o aumento da utilização de créditos de PIS/Cofins para pagamentos de Imposto de Renda, que aparece como um incremento no pagamento do IR, mas provoca uma redução na arrecadação do PIS/Cofins. Esse valor acaba pesando no resultado bimestral. •

Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Corte na carne”

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Última Atualização: 25/07/2024