No canal C8, apresentador Cyril Hanouna disse em seu programa que “adoramos Didier Raoult” e “há um enorme ciúme em torno do professor Raoult”. Tela do programa diz “(álcool) gel não funciona para nada” durante a pandemia de Covid-19

A extrema direita francesa sofreu um golpe nesta quarta-feira: o canal de televisão C8, do bilionário de extrema direita Vincent Bolloré, perdeu a concessão de TV. A emissora exibe um dos programas mais populares do país, “Touche pas à mon poste” (“Não mexa no meu lugar”, num trocadilho em francês com “não mexa com meu amigo”), com audiência média próxima de 2 milhões de espectadores. O número vinha caindo desde o início. Misturando atualidade e entretenimento, a atração é considerada um dos principais meios de banalização das ideias de extrema direita na França.

A decisão da Arcom, agência estatal de regulação da comunicação audiovisual e digital, anunciada nesta quarta-feira, vem após uma série de sanções pelo teor das declarações agressivas de Cyril Hanouna, apresentador do programa “Touche pas à mon poste”, e declarações e atitudes adotadas e exibidas no canal.

Nos últimos dez anos, o C8 recebeu mais de 30 multas, que superam 7,5 milhões de euros (aproximadamente 35 milhões de reais) segundo uma estimativa do jornal Le Monde. Declarações homofóbicas, assédio sexual, quando o apresentador Cyril Hanouna levou uma convidada durante um “jogo” a colocar a mão dela em sua genitália sem consentimento, enquanto ela tinha os olhos vendados, enquanto a exibição do programa não começava. Em outro episódio, um dos comentaristas beijou o peito de uma convidada, novamente sem consentimento.

É uma espécie de Jovem Pan gaulesa, com apresentadores menos escrotos. Também foram convidadas pessoas supostos policiais da tropa de choque, uma farsa revelada nos dias seguintes. O programa deu espaço para a difusão de teorias conspiratórias, como quando um convidado afirmou que diversas personalidades do país consomem uma suposta droga à base de sangue de crianças “sequestradas e sacrificadas”.

Outro convidado recorrente era Didier Raoult. O “guru da cloroquina” foi um dos pioneiros na defesa da molécula como remédio para a Covid-19 em plena pandemia, sem qualquer estudo sólido, desmascarado pela imprensa por seus métodos antiéticos de pesquisa. O remédio é ineficaz para tratar a infecção, como apontou a OMS (Organização Mundial da Saúde). Segundo a imprensa francesa, Raoult e Hanouna compartilham uma relação de proximidade.

Paparazzi da França descobriram recentemente um almoço íntimo entre o apresentador e presidente do principal partido de extrema direita da França (“Rassemblement National”, União Nacional em português), Jordan Bardella. Nada surpreendente. O programa de Hanouna concedeu tempo desproporcional a um candidato de extrema direita com perfil aparentemente ainda mais extremo nas eleições de 2022. Eric Zemmour, também condenado diversas vezes por incitação ao ódio e injúria racial, teve tempo majoritário, comparado aos demais candidatos à presidência.

Desde então, segurança e imigração, as principais pautas da extrema direita, passaram a dominar os debates no programa “Touche pas à mon poste”.

Não à toa, figuras de direita e principalmente de extrema direita condenaram a suspensão da concessão à C8. Deputado da direita tradicional cooptado pela extrema direita, Eric Ciotti considerou a decisão um ato de “censura”.

“A esquerda, que não suporta nenhum questionamento de sua hegemonia cultural, nenhuma expressão diferente da sua, matou a C8 fazendo pressão sobre uma autoridade independente”, acusou Jordan Bardella, presidente do RN.

Inversamente, Cyril Hanouna atacava principalmente figuras de esquerda. A vítima preferencial era a prefeita de Paris Anne Hidalgo. Recentemente, o canal C8 foi condenado a pagar 3,5 milhões de euros por chamar o ex-comentarista e agora deputado Louis Boyard, do partido LFI (A França Insubmissa, esquerda radical) de “idiota”, “perdedor” e “merda” ao vivo. Boyard foi comentarista da atração antes de se tornar parlamentar. O Conselho de Estado da França, órgão constitucional do país, considerou os atos como injúria. A multa aplicada foi de 3,5 milhões de euros (mais de 15 milhões de reais).

O ataque ao parlamentar se deu após Boyard dizer que entre as cinco pessoas mais ricas da França e que empobrecem a África por meio do desmatamento na República dos Camarões está Vincent Bolloré, proprietário do canal definitivamente sancionado. A reação de Hanouna foi uma defesa clara de seu conforto milionário. O apresentador costuma desfilar no litoral sul da França em uma Lamborghini, além de viver no mais alto luxo em sua mansão na costa.

Em comunicado, a Arcom afirma prezar pelo “interesse de cada projeto para o público considerando o imperativo prioritário do pluralismo de expressões socioculturais”.

Naturalmente, o grupo de comunicação responsável pela C8 protestou contra a decisão, que passa a valer a partir de fevereiro do ano que vem. No X, Hanouna prometeu contar “tudo” que sabe em um vídeo a ser publicado no domingo.

Paralelos com o Brasil

A relativa lentidão em suspender a concessão ao C8 permitiu uma deriva ainda maior com ataques praticados pelo canal à dignidade de convidadas, convidados e da sociedade, alimentando um sentimento crescente de impunidade e onipotência por parte dos infratores. A existência de uma agência reguladora dos meios de comunicaçao demonstra ainda assim sua importância na França, diferente do mercado completamente desregulado no Brasil.

O caso lembra a Jovem Pan, de quem o Ministério Público Federal em São Paulo pediu a cassação por desinformação em massa, a exemplo do caso das urnas eletrônicas, ou seja, falsas informações veiculadas pelo grupo de comunicação. O pedido foi considerado não procedente pela Advocacia-Geral da União, em março deste ano, optando pelo bloqueio de bens. Ou seja, deixou a mensagem continuar.

O caso da França converge com a Jovem Pan, apontando a tendência de violações pela extrema direita dos princípios de comunicação de uma concessão pública. Ambos mostram que as multas não funcionam para tais veículos infratores, com o agravante no caso brasileiro de discursos golpistas defendidos pela emissora. Mas depois de tudo, o caso parece menos grave para as autoridades brasileira. Quem sabe o término da concessão de um dos canais da extrema direita na França “ilumine” suas mentes.

Hanouna perdeu seu lugar. Na TV francesa, o império de Bolloré é amputado de uma parte, mas ainda fica com a concessão (renovada) do canal CNEWS, canal de notícias em formato “all news”, também alinhado à extrema direita. As autoridades francesas vão no método conta-gotas. Além da Vivendi, Bolloré é acionista da Vivendi, gigante das telecomunicações. O grupo foi gestor no início dos anos 2000 do saneamento então privatizado de Berlim, mas a reprovação dos serviços pelos cidadãos da capital alemã fez o poder público estatizar o serviço. 

Com a vitória da extrema direita entre o eleitorado francês nas eleições ao parlamento europeu e no primeiro turno das legislativas nacionais, derrotada na reta final apenas por uma coalizão entre partidos democráticos, a democracia vai resistindo… talvez cada vez menos.

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Última Atualização: 25/07/2024