Mais de uma década após governo estabelecer regras mínimas de saúde e segurança para o trabalho em frigoríficos, empregados da indústria da carne sofrem quatro vezes mais acidentes e têm dez vezes mais doenças profissionais do que outras

Por Isabel Haraki, com colaboração de France Júnior e edição de Naira Hofmeister no Repórter Brasil

“O TRABALHADOR entra bem na empresa e sai atrofiado”, diz Antônio*, que atuou por dois anos como operador de máquinas no frigorífico da Marfrig em Ji-Paraná, em Rondônia, até cair de uma altura de seis metros. Cinco anos depois do acidente, em 2023, ele ainda não conseguia andar mais de 200 metros sem sentir dor.

“Eu não dava conta do trabalho, deixava as peças caírem pela dor nos braços”, conta Marlene*, que trabalhou refilando carne na JBS em São Miguel do Guaporé, em Rondônia.

Ana*, ex-empregada da Marfrig na unidade de Bataguassu (MS), foi diagnosticada com tendinite depois de dez anos de serviço. “Eu sentia muita dor durante o trabalho, mas fui levando até não aguentar mais segurar um garfo. Hoje não dou conta de lavar nem um sapato”, revela.

A produção de carne é um dos pilares da economia brasileira. O país sedia três dos maiores produtores de proteína animal do planeta: JBS, Marfrig e Minerva. A cadeia produtiva completa da carne responde por 10% do PIB nacional. Mas essa pujança não se reflete em segurança e saúde para o trabalhador, segundo investigação do Programa de Pesquisa da Repórter Brasil, cuja íntegra está publicada em um relatório ‘Fábrica de acidentes’, desenvolvido em parceria com a organização dos Países Baixos SOMO. O relatório também está disponível em inglês neste link.

Em 2019, os empregados da indústria da carne no Brasil sofreram quatro vezes mais acidentes de trabalho e tiveram dez vezes mais doenças profissionais do que o trabalhador brasileiro médio. Comparada às estatísticas internacionais disponíveis, a incidência de acidentes não fatais e fatais nos frigoríficos brasileiros é elevada.

“É uma fábrica de acidentes e lesões”, confirma Marcos Cardoso dos Santos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra Intra).

Setor pujante da economia brasileira, a produção de carne tem impactos relevantes sobre a saúde e a segurança dos trabalhadores (Fotos: Isabel Harari)

Quase 140 mil pessoas trabalham em frigoríficos de bovinos no Brasil, segundo dados publicados pela Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho e Emprego. Além do abate em si, há setores como a desossa, o corte e a embalagem dos pedaços de carne – é um serviço que exige manuseio de objetos perfurocortantes como serras e facas, e muitas horas em ambientes com temperaturas extremas. Os movimentos são repetidos inúmeras vezes à medida em que as carcaças são carregadas ao longo da linha de produção por esteiras, e é preciso seguir o ritmo imposto pelas máquinas.

“Eu sentia muita dor na caixa do peito, não aguentava respirar. E também dor no ombro e nas mãos”, diz um trabalhador. “A faca ‘escapou’ e cortei a mão”, revela o outro. “Quem tem mais de quatro anos de firma, e usa faca, sempre tem dor”, reclama mais um. “Eu não aguentava puxar as peças da esteira. A enfermeira dava paracetamol, cataflan, e mandava de volta para o trabalho”, completa uma quarta pessoa – todas entrevistadas sob condição de anonimato.

Repórter Brasil foi a campo e realizou 63 entrevistas com empregados e ex-empregados de frigoríficos para ouvir suas avaliações sobre o trabalho. A grande maioria (84%) dos entrevistados diz ter doenças relacionadas ao trabalho, e muitos deles (40%) sofreram acidentes de trabalho. Quase todos (93%) relatam desconforto térmico, a grande maioria (87%) faz horas extras, e menos da metade faz as pausas obrigatórias, sendo que há consenso entre especialistas de que esses fatores podem levar a mais acidentes e doenças.

“O ritmo de trabalho intenso, em ambiente confinado que combina diversos fatores de risco, leva ao adoecimento, a acidentes e a mortes”, confirma Leomar Daroncho, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Em nota, a Marfrig afirmou que cumpre todas as normas de segurança e medicina do trabalho, e que conta, em seu quadro de funcionários, “profissionais especialistas em fisioterapia e em ergonomia, médico do trabalho, enfermeiro, engenheiro e técnico do trabalho”. “As atividades dos colaboradores são realizadas dentro dos parâmetros normativos de segurança, ergonomia e saúde, sem a existência de ritmo intenso, estipulação de metas ou imposição de jornadas extenuantes de trabalho”, completa.

A JBS frisou que segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas que são “revisadas anualmente com base em indicadores de saúde e segurança, como rotatividade, absenteísmo e horas extras, assim como apontamentos feitos pelos funcionários”.

A Minerva também afirmou seguir medidas de saúde e segurança no trabalho. Em nota, disse que “busca ainda garantir um ambiente de trabalho de segurança e bem-estar,  promovendo capacitação, iniciativas para a melhoria da qualidade de vida e seguindo um conjunto de diretrizes que englobam desde seu próprio Código de Ética – Guia de Conduta até  as legislações trabalhistas de cada país em que atua”.

As manifestações na íntegra das empresas podem ser acessadas aqui.

Norma que reduziu riscos esteve ameaçada por Bolsonaro

As precárias condições de trabalho em frigoríficos não são novidade. Tanto que em abril de 2013, após mais de uma década de debates, o governo publicou a Norma Regulamentadora nº 36 do Ministério do Trabalho e Emprego, um texto técnico que regulamenta o trabalho nas plantas de abate. A NR-36, como é mais conhecida no meio, estabeleceu parâmetros de saúde e segurança para os trabalhadores do setor, na época muito criticado pelo ritmo intenso de produção imposto pelos empregadores.

“Foi uma luta de anos, demonstrando o quadro de severas consequências sobre a saúde e a vida de trabalhadores, mas resultou no consenso entre empregadores, trabalhadores e governo para a construção de balizas que protegessem, minimamente, os trabalhadores de frigoríficos”, recorda Daroncho, do MPT.

Teresa* e Leandro* trabalharam em um grande frigorífico no centro-oeste há mais de dez anos, antes da implementação da NR-36. Naquela época, contam, não existiam pausas ao longo da jornada e se fazia hora extra todos os dias. “O ritmo de trabalho era pauleira. Eu fazia o serviço de três pessoas”, relata o funcionário. A intensidade cobrou um preço: Teresa ainda sente dores nas costas e braços, e seu dedo da mão não dobra mais: “a vida da gente ficava muito presa lá dentro”, desabafa.

Trabalho em frigoríficos possui norma específica para garantir segurança e saúde dos empregados, mas dez anos depois, acidentes e afastamentos ainda são realidade (Fotos: Isabel Harari)

Os dados indicam um cenário melhor após a entrada em vigor da NR-36. Historicamente, a principal causa de afastamentos do trabalho no setor são doenças osteomusculares e de tecido conjuntivo – problemas como lesões nos músculos, tendões e  articulações. Mas essas ocorrências caíram de 1,7 mil em 2012, para 923, em 2022. Já as fraturas, segundo motivo no ranking de afastamentos do INSS em frigoríficos, passaram  de 1,3 mil para pouco mais de mil casos em dez anos.

“Não temos dúvida que a NR-36 evitou milhares de acidentes, mutilações e óbitos dentro dos frigoríficos”, disse o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Alimentação, Artur Bueno, em um evento que marcou os dez anos da normativa, realizado em 2023.

A celebração também refletia uma vitória mais recente: em janeiro de 2022, uma liminar freou um plano do governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL) de fazer mudanças na NR-36. O projeto de revisão da norma, que foi apoiado por entidades que representam os frigoríficos, previa, entre outros pontos, uma mudança no regime de pausas estabelecido pela norma regulamentadora – as empresas são obrigadas a conceder um descanso total de 60 minutos ao dia, distribuídos em seis pausas de dez minutos ou em três pausas de 20 minutos para a recuperação física dos trabalhadores.

Mais da metade dos frigoríficos foi autuada recentemente

No período de 2017 a 2020, de 1.437 plantas de abate auditadas no setor frigorífico, 64% foram autuadas por falta de atendimento aos requisitos da NR-36. “Ainda há necessidade de avançar, especialmente com relação às lesões por esforço repetitivo, o respeito às pausas e inibição da contaminação dos trabalhadores por vazamento de gases tóxicos como amônia”, destaca Rogério Araújo, auditor fiscal do trabalho do Ministério Público do Trabalho (MTE).

Exemplo: um laudo pericial do Ministério Público do Trabalho (MPT) feito em novembro de 2022 após uma ação de fiscalização na unidade de Bataguassu (MS) da Marfrig – a mesma em que Ana* trabalhou – revela irregularidades em relação à ergonomia, disponibilização de Equipamentos de Proteção Individual e medidas de proteção para a manipulação dos maquinários no frigorífico. “A Marfrig de Bataguassu não vêm adotando medidas suficientes de redução e/ou eliminação dos riscos”, conclui o texto.

Laudo do Ministério Público do Trabalho identificou problemas de ergonomia e EPIs na Marfrig de Bataguassu (MS) (Foto: Ministério Público do Trabalho)

Outra vistoria do MPT em 2019 já havia “constatado a presença de situações de risco grave e iminente, colocando em risco a integridade física, a saúde e a vida das pessoas”. O órgão levantou que entre 2018 e 2019 foram fornecidos mais de 1,5 mil atestados por doenças osteomusculares na unidade de Bataguassu, número considerado elevado frente aos 1,3 mil trabalhadores da unidade.

Em agosto de de 2023, o MPT também concluiu que a JBS apresenta “resistência em implementar medidas que afetem diretamente os custos e a produção das unidades frigoríficas” em Rondônia. Além disso, o órgão afirma que a empresa foi “incapaz de comprovar que mantém a temperatura dos ambientes de trabalho dentro dos limites de tolerância, realiza o controle adequado das pausas e possui parâmetros de produtividade compatíveis com a capacidade laboral de cada trabalhador”. A ação trabalhista, iniciada em 2010, determinou o pagamento de multa de R$ 552,2 mil pela empresa.

Vistoria do Ministério Público do Trabalho identificou irregularidades na planta da JBS em Vilhena (RO) (Foto: Ministério Público do Trabalho)

Parte dos prejuízos com o descumprimento de normas trabalhistas, como a NR-36, recaem sobre os cofres públicos. Em 2021, o governo federal desembolsou R$ 1,8 bilhão com auxílio doença por acidente de trabalho ocorridos no país, em todos os setores econômicos – as despesas acumuladas desde 2012 já bateram R$ 23,4 bilhões. “Acidente de trabalho é algo que precisa ser combatido, é algo interligado com o subdesenvolvimento da nação”, diz Alberto Balazeiro, do Tribunal Superior do Trabalho. “É preciso compreender que além do drama de uma família, que é irreparável, existe um drama geracional, social, de gravidade imensa”, completa.

Em relação às irregularidades encontradas em suas plantas em Vilhena e Porto Velho, a JBS disse que “o tema é anterior à publicação da NR dos Frigoríficos (NR36). Não há laudo que indique descumprimento das normas em vigência”. Já a Marfrig afirmou que “a maioria absoluta dos itens de segurança e de ergonomia foram considerados adequados pela fiscalização e que as melhorias sugeridas estão sendo colocadas em prática”.  As respostas podem ser lidas na íntegra aqui.

*Nomes fictícios para preservar as identidades dos trabalhadores

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Última Atualização: 23/07/2024