A disputa de narrativas é a tônica da conjuntura política atual. A lógica binária da nova ordem mundial sustenta as dinâmicas das relações políticas, os antagonismos são a dinâmica imposta nas relações políticas.

Se aqui no Brasil temos, de um lado, propostas de políticas públicas que abarcam Estatuto da Igualdade Racial e Ministério dos Povos Originários, de outro, temos políticas de armamento da população, boiada passando na aprovação do uso de agrotóxicos, nenhum metro cúbico de oxigênio para os pulmões de quilombolas e indígenas durante a pandemia de Covid e nem um centímetro de terras demarcadas para esses povos.

O fim do mandato presidencial de Jair Bolsonaro e a eleição do novo governo trouxeram a sensação de que o risco de uma ruptura democrática estaria afastado e que o país poderia reconstruir a confiança em suas instituições. No entanto, a tentativa frustrada de golpe de estado ocorrida em 8 de Janeiro de 2023, com a simbólica depredação dos prédios que sediam os Três Poderes da República, mostrou o quanto o tecido democrático brasileiro ainda está esgarçado e frágil.

No país em que alguns anseiam para que meninas usem rosa e meninos, azul, entre picanha, chopinho e pé de goiabeira, duas linhas de propostas de narrativa remontam à lógica do cenário mundial. Mesmo que sob a vigência de um governo democrático, estamos longe de poder respirar aliviados e afirmar que o perigo da radicalização política passou. O rastro de destruição e desmonte estrutural de políticas públicas e instituições ainda é uma presença fortemente sentida nos mais diversos níveis.

As recentes investigações da Polícia Federal sobre a utilização da Abin para espionar de forma clandestina e ilegal diversos políticos, jornalistas, comunicadores, organizações sociais e desafetos do então governante, deixam evidente a tentativa de cerceamento de sua liberdade de atuação.

Os ataques frequentes e violentos às organizações do terceiro setor estão em alinhamento direto com a metodologia do modelo autocrático de poder que foi implementado no país entre 2019 e 2022, que, infelizmente, ainda segue sendo desejado por muitos.

Com a proximidade do período eleitoral para câmaras municipais e prefeituras neste segundo semestre e em meio ao advento de novas ferramentas de inteligência artificial e de outros recursos tecnológicos de uso ainda não regulamentado, assim como à atuação nebulosa e sem critérios definidos das big techs na distribuição e acesso à informação, será preciso redobrar a vigilância cívica para garantir uma disputa livre, equilibrada e pautada pela legalidade em todos os âmbitos.

A estrutura hegemônica das relações políticas constrói um cenário que se reproduz em escala. Na última semana assistimos a Nova Frente Popular se tornar a maior força política do Parlamento francês.

Sabemos, no entanto, que o epicentro da conjuntura política do mundo ainda é o Tio Sam, e, pelas bandas dos Estados Unidos, temos a voracidade Trumpista versus a grande colcha de retalhos de avanços e retrocessos que compõem a linha ideológica da base democrata.

A eleição de governos com tendências ao autoritarismo e o advento de políticas extremistas em diversos países do mundo mostra o forte apelo que o discurso antidemocrático tem conseguido alcançar junto a determinados grupos sociais. A abrangência dessas mensagens antiprogressistas não é casual, mas fruto de métodos pautados na disseminação sistemática de desinformação, mentiras e discursos de ódio, que minam progressivamente a confiança na institucionalidade e na política e restringem a diversidade social.

O cenário mundial segue fortemente polarizado e violento, inclusive com guerras territoriais e étnicas em curso. O horizonte mostra o crescimento e a força dos partidos extremistas e dos discursos reacionários, violentos e excludentes, como vimos recentemente no atentado a Donald Trump, candidato à Presidência dos Estados Unidos. Um jovem de 20 anos atirou no político durante um comício, acertando uma de suas orelhas. Diferente do que se poderia imaginar, era registrado como eleitor do Partido Republicano, o mesmo que o próprio Trump representa.

Então, um homem branco, norte-americano, radicalizado, atira em um candidato de seu próprio partido, também branco e norte-americano, que defende o aumento de políticas armamentistas, xenofóbicas, supremacistas e outras pautas de forte apelo radical. Vale destacar que a arma utilizada no atentado, um fuzil AR-15 automático, é comum nos EUA e estima-se que existam mais de 20 milhões deste modelo de propriedade legal no país.

Em meio à leitura turva da situação, a máquina de desinformação trabalha com celeridade e apresenta ao mundo a imagem do candidato de punho erguido junto à bandeira de seu país, com o rosto ensanguentado. A força da imagem vale mais do que qualquer possibilidade de análise coerente ou bem fundamentada, e o público recebe Trump na convenção eleitoral seguinte usando curativos falsos nas orelhas. O atentado torna-se imediatamente uma ferramenta de marketing político que estampa todas as capas de jornais e reverbera pelo ciberespaço.

O fato que não se pode negar é que, com a saída Biden, da disputa eleitoral, nunca houve uma conjuntura de diferenças tão abissais. De um lado, a cisgeneridade heteropatriarcal de Donald Trump e, de outro, como descreveria Angela Davis, o único indivíduo capaz de mover o mundo desde as bases: uma mulher negra.

Estamos assistindo ao ápice da encruzilhada narrativa da política mundial, que sem dúvida alguma, se refletirá diretamente nas conjunturas políticas dos países do sul global. Mulher negra na Casa Branca. Homem branco armamentista que toma um tiro. Qual será a história que, de agora em diante, o mundo passará a contar?

Existe um provérbio africano que diz que, toda manhã, a gazela sabe que precisa correr mais rápido que os leões para sobreviver. E que, toda manhã, o leão sabe que precisa correr mais rápido que a gazela para não morrer de fome. A síntese do provérbio diz que não importa se você é um leão ou uma gazela, quando o sol nascer, comece a correr.

Esta é a hora exata de fortalecer as organizações sociais e demais instituições do terceiro setor, que tradicionalmente ocupam um importante espaço de qualificação do debate público e de fortalecimento das estruturas democráticas em prol de uma sociedade menos desigual e mais justa para todos os cidadãos. Eis que o atual cenário político remonta exatamente ao provérbio e, se formos espertos, devemos começar a correr.

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Última Atualização: 23/07/2024