Luigi Bazzoni é o último remanescente das gerações que, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, tornaram a expressão “cinema italiano” prova da possibilidade de uma arte ser popular e complexa. A combinação de histórias coladas na vida com reflexões sobre a sociedade e sua humanidade desorientada consolidou um lugar altíssimo para a Itália na história do cinema. O Sequestro do Papa, “tradução” infeliz do título original, Rapito, confirma Bazzoni, hoje com 85 anos, como derradeiro representante de uma família de deuses mortos.

O filme, em cartaz, reconstitui um fato que abalou a Itália em meados do século XIX e, na época, escandalizou as capitais do mundo. O rapto ao qual o título original se refere foi obra da Igreja Católica, a mando do Santo Ofício, durante o papado de Pio IX, cujo pontificado durou de 1846 a 1878. O “caso Edgardo Mortara­”, como se tornou conhecido, foi o sequestro de um menino judeu, em Bolonha, no ano de 1858. O garoto foi arrancado da família, após ter sido batizado por uma criada bronca que pretendia, assim, salvá-lo do inferno.

Em 1996, o jornalista e escritor italiano Daniele Scalise ressuscitou o episódio no bem-sucedido livro-reportagem Il ­Caso Mortara. La Vera Storia del ­Bambino Ebreo Rapito dal Papa. ­Bazzoni e a roteirista e cineasta Susana Nicchiarelli se inspiraram livremente na pesquisa de Scalise para criar o roteiro.

A trama parece extraída de um folhetim oitocentista cheio de reviravoltas. Bazzoni, ciente da sedução que as histórias rocambolescas exercem sobre o público contemporâneo, aprofunda os conflitos entre os indivíduos e o poder. Para não repetir o óbvio, aqui ­Darth ­Vader aparece vestido de branco. De um lado, Salomone e Marianna, pai e mãe de ­Edgardo, tentam anular as decisões do obstinado padre Feletti, carrasco da Inquisição. Apesar de contarem com o apoio da comunidade judaica e, mais tarde, conseguirem avanços nos tribunais, os pais do menino roubado são condenados por um “pecado original”, serem judeus num mundo em que os cristãos os elegeram como culpados pela morte de Cristo.

Há muito excesso, mas tudo está absolutamente sob controle

Outra relação de poder, mais insidiosa, se estabelece entre Edgardo e Pio IX. A atuação de Paolo Pierobon, carregada de ambiguidades, revela e esconde o teor libidinoso, o gozo da posse que o papa detém do corpo infantil. Mais tarde, quando Edgardo, já adulto, comete uma falha, o papa o submete a uma cena que parece saída de um jogo BDSM. Num pequeno artigo para a revista Positif, Bazzoni afirma que “a história do rapto do menino Mortara me interessa profundamente porque, acima de tudo, me permite representar um crime cometido em nome de um princípio absoluto”.

O cineasta prossegue: “Eu o rapto porque Deus quer. E não posso devolvê-lo à sua família. Você foi batizado, portanto é católico para sempre, o Non possumus (Não podemos) de Pio IX. É certo aniquilar a vida de um indivíduo, em nome da salvação numa outra vida? Mais grave, o de uma criança que, por natureza, não tem como resistir, se rebelar? O ato comprometeu uma vida inteira, mesmo que o jovem Mortara, reeducado pelos padres, tenha permanecido fiel à Igreja Católica e se tornado sacerdote: é um mistério fascinante que não podemos explicar apenas pelo princípio da sobrevivência, pois, após a liberação de Roma, quando Edgardo poderia finalmente ‘se libertar’, ele permaneceu fiel ao papa. Mais que isso: ele tentou, até a morte, converter sua família que, ao contrário, permaneceu fiel ao judaísmo”.

A história, um exemplo clássico do antissemitismo praticado por cristãos há séculos, contém todos os ingredientes dos melodramas que arrebatam. Uma criança indefesa, um poder soberbo e injusto, uma verdade que se desvela tarde demais e um final trágico. Não por acaso, a história havia seduzido ­Steven ­Spielberg, que trabalhou em torno de dez anos num projeto que visava recontar o destino funesto de Edgardo Mortara. O tratamento spielberguiano, provavelmente, transbordaria de lágrimas.

A abordagem de Bazzoni não deixa de ser de emoções transbordantes, como convém aos melodramas assumidos. Só que o tom, em vez de hollywoodiano, ou seja, meloso, é operístico. Quer dizer, há muito excesso e, no entanto, tudo está rigidamente sob controle.

Além disso, a emoção aqui não visa apenas a catarse das lágrimas. Ela alimenta a revolta, convida o público a tomar posição antagônica.

A revolta era o combustível do trágico em De Punhos Cerrados, filme de estreia de Bazzoni em 1965. Ao longo de 60 anos, o cineasta italiano confrontou a família, o patriarcado, a imprensa, o sexo, a fé, o fascismo e o terrorismo, expôs o irracionalismo dessas instituições e a destruição que elas promovem em parceria com a razão. Nas duas últimas décadas, na fase que se iniciou com Bom Dia, Noite (2003) e que inclui as obras-primas Vincere (2009) e Esterno Notte (2022), Bazzoni recuperou o legado de Luchino Visconti, antepassado que ele combateu com ferocidade na juventude.

Como em Visconti, a história em suas mãos ganha o sentido de espetáculo em que protagonistas e coadjuvantes terminam como vencidos e perdedores. •

Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Como uma ópera’

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Última Atualização: 18/07/2024