Em seu aniversário de 40 anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) lança um projeto ambicioso de ocupar Câmaras Municipais e prefeituras pelo Brasil afora. Em plenária preparatória para as eleições, realizada no início de julho na Escola Nacional Florestan Fernandes, o centro de formação política do movimento, localizado em Guararema, no interior paulista, foram anunciadas mais de 300 pré-candidaturas. “A expectativa é chegarmos a 700 candidatos”, projeta Luana Carvalho, integrante do grupo de trabalho eleitoral do MST. A proposta de “ocupar o latifúndio institucional” também é uma reação à ofensiva ruralista no Congresso, com dezenas de projetos destinados a criminalizar os grupos que lutam por reforma agrária. Em nível local, avaliam lideranças dos sem-terra, é mais fácil conquistar a confiança do eleitorado, sobretudo nas cidades com assentamentos que abastecem a população com alimentos orgânicos e saudáveis.

Nas eleições de 2022, o MST fez um pequeno ensaio, ao lançar 15 candidatos. O resultado surpreendeu: foram eleitos dois deputados federais e quatro estaduais em diferentes estados. De acordo com Carvalho, a ideia de ingressar de forma mais expressiva no campo institucional deu-se após anos de debates e análises políticas que demonstraram um amadurecimento do movimento. “Não vamos abandonar a luta popular, a defesa pela reforma agrária, muito menos os nossos métodos. Mas entendemos que este é o momento de também ocupar os espaços institucionais.” Os pré-candidatos vão concorrer filiados a partidos do campo progressista, como PT, PSOL, PCdoB, PDT e PSB. Em cada município serão definidas as alianças locais e a forma de financiamento de campanha, conforme a realidade local.

Além de avançar nos espaços legislativos e executivos, o movimento tem a expectativa de ampliar o debate com a sociedade. “É uma luta ideológica. Hoje, o agronegócio tem uma presença muito forte na Câmara dos Deputados e no Senado. O MST sempre teve aliados políticos no campo institucional, mas entendemos que só apoiá-los não é o suficiente”, explica a dirigente. O movimento não lançará candidatos apenas nos estados do Amazonas, Acre e Amapá. O foco são principalmente os pequenos municípios, onde já há uma relação orgânica com a comunidade local, embora existam candidaturas previstas em grandes centros urbanos.

O movimento foca nos pequenos municípios, onde já há uma relação orgânica com a comunidade local

Em Salvador, o MST tem experiência antiga no campo institucional e terá uma mulher como vice na disputa à prefeitura desta capital. Fabya Reis ingressou no movimento ainda na adolescência e dedicou toda a vida à luta pela reforma agrária. Pós-doutora em Ciências Sociais, foi convidada pelo próprio governador Jerônimo Rodrigues para compor a chapa com Geraldo Júnior, do MDB. “Não foi algo que se deu de um dia para o outro. Acumulamos experiência na luta e vimos que hoje é possível nos articularmos no campo institucional, com candidatos muito qualificados”, afirma. Antes de aceitar a missão da disputa eleitoral, Reis era secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do governo da Bahia, onde pôde identificar os problemas mais agudos que atingem a população soteropolitana. “Cerca de 30% das pessoas andam a pé porque faltam linhas de ônibus. A rede de educação infantil e pré-escola é incapaz de atender todas as crianças. Menos de 50% da população não tem acesso à estrutura de atenção primária de saúde”, enumera a pré-candidata.

Nos municípios menores, alguns militantes do MST pretendem abrir caminho “na raça”. É o caso de Paula Pereira, pré-candidata a vereadora em Campestre de Goiás, com menos de 4 mil habitantes e distante cerca de 50 quilômetros da capital Goiânia. Oriunda do Assentamento Canudos, a abranger três cidades, e presidente do Diretório Municipal do PT, a assistente social vai concorrer pela primeira vez a um cargo legislativo. “Atualmente, dos nove vereadores, temos apenas uma mulher, e ela é bolsonarista. Não há nenhum petista na Câmara. Será um imenso desafio romper essa cerca, mas estou muito bem acompanhada de todos os meus companheiros e companheiras do movimento.”

Pereira pretende mostrar aos eleitores que são os assentados e agricultores familiares que colocam a comida na mesa dos brasileiros, e não os latifundiários do agronegócio, focados na exportação de commodities. “A população hoje reconhece que a chegada do assentamento dinamizou a economia local. Apesar da violência do agro, que ainda é ao estilo da antigas milícias rurais, consolidamos uma relação amistosa com os moradores”, afirma a candidata. “No assentamento, temos igrejas evangélicas e católicas. Promovemos festas populares, como a Folia de Reis. A prática de esportes, principalmente o futebol, constitui outro importante espaço de interação.” Ainda sem saber se terá financiamento do fundo partidário, ela começou sua pré-campanha apenas com doações de amigos.

É justamente essa a aposta de Emerson Giacomelli, pré-candidato a vereador pelo PT em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul. Agricultor no Assentamento Capela, ele recorda com orgulho da trajetória familiar. “Terminei de me criar debaixo da lona preta”, afirma, ao comentar que seus pais ingressaram no movimento em 1989, quando ele era adolescente. Após cinco anos de acampamento, a família finalmente recebeu a posse de um pequeno sítio, onde vive e produz alimentos até hoje. Na região, explica Giacomelli, o MST conquistou uma boa relação com a comunidade local através do trabalho em cooperativas e feiras onde vende sua produção. “Nosso assentamento é bem estruturado, temos escola, igreja e equipamentos de cultura. Isso nos ajuda a desenvolver uma boa interlocução.” Ex-secretário de Agricultura do município gaúcho, ele desenvolveu programas de financiamento e incentivo à agricultura familiar e, agora, pretende fortalecer essa agenda na Câmara Municipal, além de defender as bandeiras da cultura, da mobilidade e do enfrentamento à violência de gênero. “Esse ainda é um problema agudo no campo.”

No outro extremo do País, em Marabá, ao sul do Pará, está a pré-candidata Polliane Soares Barbosa, que ingressou no MST aos 11 anos de idade, juntamente com a mãe, um dia após o Massacre de Eldorado dos Carajás, quando 19 militantes sem-terra foram assassinados numa emboscada policial. “Aquilo me despertou para a necessidade de lutar por justiça. Mesmo sendo uma criança à época, desde então me dedico à luta pela reforma agrária.” A história de Polliane confunde-se com a de milhares de integrantes do movimento que, de origem muito pobre, só tiveram oportunidade de estudar nas escolas montadas pelo próprio MST. Hoje, ela é especialista em questão agrária amazônica e cursa o mestrado na mesma área na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, a Unifesspa.

“O MST sempre teve aliados políticos no campo institucional, mas entendemos que só apoiá-los não é o suficiente”, explica dirigente sem-terra

Pelo PT, Barbosa aposta em uma candidatura coletiva. Ela e as companheiras Heidiany Moreno, do Sindicato dos Bancários, e Luciana Ferreira, do Sindicato do Comércio, formam a chapa “Elas por Marabá”, cujas principais bandeiras são políticas públicas para as mulheres, combate à violência obstétrica, defesa dos trabalhadores do comércio, trabalho digno para a juventude, mobilidade urbana e, claro, a reforma agrária, “o melhor caminho para reduzir a fome e a miséria no campo”, avalia. Com recursos do fundo partidário e dinheiro arrecadado por “amigos da campanha”, o trio faz o trabalho de base de casa em casa, ouvindo a população. “Nossa agenda eleitoral foi construída totalmente a partir do processo de escuta.”

No município fluminense de Campos dos Goitacazes, na Região dos Lagos, Mateus dos Santos assume o nome “Mateus do MST”, para concorrer a uma cadeira na Câmara Municipal, também pelo PT. Filho de cortadores de cana que migraram de Alagoas em busca de vida melhor, passou a infância embaixo de uma lona às margens de uma grande fazenda improdutiva, até que a família conquistou um lote onde ele trabalha até hoje. “Fui uma criança acampada e depois assentada. Desde muito pequeno fui educado através das atividades lúdicas do MST, voltada à formação política infantil.” Trata-se do “Movimento dos Sem Terrinha”, do qual é um dos articuladores nacionais, aos 28 anos. Morador do assentamento Zumbi dos Palmares, fala com orgulho do “Sítio Brava Gente”, como sua família batizou o lote recebido. “Meu pai foi alfabetizado pelo MST, e o livro Brava Gente, do João Pedro Stedile, foi o primeiro que ele leu.”

Hoje estudante de Ciências Contábeis, Mateus do MST é um dos dirigentes estaduais do movimento. As principais bandeiras de sua campanha são reforma agrária, educação de qualidade no campo, políticas públicas para a juventude e combate ao racismo. “Campos dos Goitacazes concentra a maior base do MST do estado. Temos 15 assentamentos na região e isso nos dá chance de ampliar o diálogo com a população, principalmente através do debate pela alimentação saudável.” •

Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rompendo cercas, agora na política’

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Última Atualização: 18/07/2024