Eduardo Roberge Frutuoso gerenciava um parque em Blumenau e cobrava, em nome do Poder Público, pelo aluguel de espaços para eventos. Frutuoso induzia os clientes a pagar em dinheiro e ficava com parte dos valores: ao menos 27 mil reais em 2017. Em março de 2023, foi sentenciado a cinco anos de cadeia pela 2ª Vara Criminal de Blumenau. No mês seguinte, Henrique Manoel Machado, ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Roraima, sofria condenação igual no Superior Tribunal de Justiça. Tinha recebido 297 mil reais em auxílio-transporte referentes aos anos de 2011 a 2014, apesar de afastado do TCE no período. Ele próprio autorizara o pagamento, ao assumir a chefia da Corte de contas em 2015. Tanto Machado quanto Frutuoso cometeram o crime de peculato, previsto no artigo 312 do Código Penal, ilícito que consiste no embolso de bens ou valores dos quais um agente público deveria tomar conta. O tempo de prisão varia de 2 a 12 anos.

Esse tipo de crime também é punido fora do Brasil. Há três meses, um ex-presidente, Dinis Costa, da Câmara de Vereadores da cidade portuguesa de ­Vizela foi condenado a quatro anos de cadeia por ter usado o cartão corporativo municipal para pagar 10 mil euros, cerca de 60 mil reais, em contas de restaurantes e hotéis. Descrito no artigo 375 do Código Penal português, o peculato tem origem no Direito Romano. Sua definição na Roma antiga era mais ou menos a mesma de hoje. Naquele tempo, não havia moeda ou notas de dinheiro. A contagem do tamanho do desvio de bens públicos era feita com base em bois. Ou seja, em “gado”, pecus em latim. Vem daí o nome do crime. O pecus brasileiro e seu ídolo têm motivos para apreensão por estes dias, quando o assunto é peculato.

Moraes não se cansa de proporcionar ao País momentos de diversão – Imagem: Rosinei Coutinho/STF

Na segunda-feira 15, veio a público o áudio de uma reunião de 25 de agosto de 2020 do então presidente Jair Bolsonaro com duas advogadas que defendiam o senador Flávio, o 01, no caso das “rachadinhas”, nome folclórico para uma situação que o Ministério Público classificaria dois meses depois como peculato. As defensoras queriam um auxílio do governo para anular provas contra o filho de Bolsonaro. “O caminho tem que ser processual, tá? Materialmente é muito ruim. A história é ruim”, afirmou uma delas, Luciana Pires, no fim da reunião, já sem o presidente na sala. Tradução: era difícil rebater a eventual acusação de que Flávio seria, numa linguagem popular e das ruas, ladrão de verba pública. Melhor seria tentar salvá-lo com alegações processuais, ou seja, de que algo não havia sido feito de forma correta pela polícia ou pelo Ministério Público ao longo do processo.

Quem ouviu o comentário de Pires foi o delegado federal Alexandre ­Ramagem, então diretor da Agência Brasileira de Inteligência, outro presente na conversa das advogadas com o capitão, juntamente com o general Augusto Heleno, à época ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Ramagem gravou a reunião, áudio encontrado pela PF em um dos três celulares do atual deputado confiscados em janeiro, durante uma das etapas da Operação Última Milha, investigação sobre o uso da Abin para proteger parentes e perseguir inimigos do capitão. Os federais também encontraram, ao vasculhar os pertences de Ramagem, uma anotação que dizia, segundo O Globo, “contestar juridicamente a imputação de peculato, desestruturar teoria de domínio do fato do Flávio como suposto mentor de esquema”. Na quarta-feira 17, o delegado depôs por seis horas na superintendência da PF do Rio de Janeiro, cidade na qual pretende concorrer ao cargo de prefeito.

Ramagem gravou e Heleno não entendeu nada (ou se fez de sonso). As advogadas Pires e Bierrenbach deram o caminho das pedras – Imagem: Washington Costa/MF, Redes sociais e Fernando Frazão/ABR

Se uma das advogadas achava melhor não concentrar a defesa em torno do mérito de uma eventual acusação de peculato, um conselheiro jurídico do pai do senador teve ideia semelhante diante do apuro do ex-presidente no rolo das joias. Em 8 de março de 2023, ­Frederick ­Wassef conversou com Bolsonaro por ­WhatsApp. O caso tinha estourado na mídia cinco dias antes. Na véspera do papo, Wassef havia preparado uma nota pública em nome do ex-presidente. Em um áudio, o advogado dizia que o objetivo da nota era transmitir a ideia de que Bolsonaro seria vítima de “armação e fake news”. “Esta mensagem simples, curta e grossa é que tem que ir para o público. Sem adentrar em detalhes, em questões de leis e nem nada porque o povo não tem tempo pra ler e nem vai entender isso”, instruiu.

As mensagens trocadas com o capitão estavam em um dos quatro celulares do advogado apreendidos pela PF em agosto passado, durante a Operação Lucas 12:2, que apura o comércio de joias recebidas por Bolsonaro enquanto ocupava o Palácio do Planalto. No início de julho, a PF encerrou a investigação e concluiu: o ex-presidente cometeu peculato, meteu a mão em joias que ganhara no exercício do mandato e pertenciam ao Estado. Agora cabe ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, decidir o que fará com as descobertas e conclusões policiais. Ele pode pedir novas apurações à PF, considerar o material inútil e arquivá-lo ou vislumbrar um crime de autoria provável ou comprovada e denunciar os envolvidos ao Supremo Tribunal Federal.

Tostes e Gomes foram pressionados a servir aos interesses pessoais da família – Imagem: Washington Costa/MF e Edu Andrade/MF

No Ministério Público, há quem entenda ser o caso das joias aquele mais bem caracterizado e de mais fácil compreensão entre todos os inquéritos policiais contra Bolsonaro. O ex-presidente ainda goza da simpatia de boa parte da população. Para amaciar o terreno perante a opinião pública de futuros julgamentos no Supremo seria bom começar por um caso como o das joias. Gonet não tem pressa. Repete que não haverá “açodamento”, conforme relatos na Procuradoria. Prefere evitar fazer acusações durante a campanha municipal, entre agosto a outubro. Seria uma forma de não alimentar teorias de que estaria mancomunado com dois “inimigos” comuns do bolsonarismo: Alexandre de Moraes, do Supremo, e o presidente Lula.

Flávio foi denunciado por peculato pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em outubro de 2020, mês em que deveria ter ocorrido, mas não houve, em razão da pandemia, eleições municipais – adiadas para novembro. Peculato era o crime principal por trás do esquema das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa fluminense. O filho 01 havia sido ­deputado estadual de 2003 a 2018. Tinha direito a verbas para contratar funcionários, e esses recursos eram divididos entre o contratado e ele, conforme a denúncia dos procuradores. Às vezes, o montante chegava ao então deputado pelas mãos do ex-PM Fabrício Queiroz, seu antigo chefe e velho conhecido de Jair Bolsonaro. Um amigo que fez depósitos na conta de Michelle e ficou sumido no início do governo do capitão até ser preso preventivamente, em junho de 2020, num sítio de Wassef. O mérito da acusação de peculato contra Flávio jamais foi examinado pela Justiça. Após idas e vindas em instâncias do Judiciário, o processo acabaria anulado em 2021.

Paulo Gonet, procurador-geral da República, não demonstra pressa em denunciar Bolsonaro

Em busca de uma mãozinha para anular as provas, as advogadas do senador recorreram a Bolsonaro em 25 de agosto de 2020. Uma delas, Juliana ­Bierrenbach, teorizou diante do então presidente, conforme se ouve no áudio recém-divulgado, que as apurações do MP sofriam de uma ilegalidade na origem. Qual? Os relatórios do Coaf, órgão federal de combate à lavagem de dinheiro, nascido de dicas indevidas feitas por auditores fiscais da Receita Federal no Rio de Janeiro. ­Bierrenbach construiu essa versão com base em disputas judiciais que realmente aconteceram entre auditores. De um lado da disputa estavam servidores acusados por colegas de corrupção. De outro, espiões da vida patrimonial dos acusados.

Para provar as irregularidades dos relatórios do Coaf, as advogadas propuseram a Bolsonaro recorrer aos chefes da Receita e do Serpro, o serviço federal de proteção de dados. Ambos poderiam identificar quais auditores acessaram os dados fiscais e patrimoniais de Flávio. O presidente concordou com a proposta. “É o caso de conversar com o chefe da Receita, ele (Flávio) não tá pedindo nenhum favor, ninguém tá pedindo favor aqui. É o caso de conversar com o chefe da Receita, o Tostes.” José Barroso Tostes Neto comandava a Receita. O capitão topou falar ainda com o então diretor do Serpro, Gileno Gurjão Barreto, embora tenha se confundido e achado que se tratava de Gustavo Canuto, à época à frente da Dataprev, empresa de tecnologia e dados da Previdência. “(Canuto) É o zero um do Serpro, era ministro meu, foi pra lá… Sem problema nenhum conversar com ele, não vai ter problema nenhum conversar com o Canuto.”

O general Cid prestou-se ao serviço de “mula” de Bolsonaro – Imagem: Marco Cardelino/Alesp

Caso tenha falado com Tostes e Barreto sobre o caso do filho, Bolsonaro praticou “advocacia administrativa” (artigo 321 do Código Penal) e tráfico de influência (artigo 332). É de se supor que o tenha feito, não só pelo teor da reunião. Recorde-se o que ele comentara em 2019, ao tentar emplacar o filho Eduardo como embaixador nos Estados Unidos: “Pretendo beneficiar um filho meu, sim”. Ou então o que dissera em uma reunião ministerial de abril de 2020: “Não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro. E ponto final”. Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça dias depois, por resistir ao que chamou de tentativas de “interferências políticas” de Bolsonaro na PF.

Com a saída de Moro, Bolsonaro substituiu o diretor-geral da PF e tentou nomear Ramagem, mas o Supremo o impediu. Amigo do clã Bolsonaro, o agora deputado estava desde 2019 na agência de inteligência e parece ter aceitado tirar do papel uma ideia de Carlos, o 02: montar uma “Abin paralela”. Quem revelou a ideia de Carluxo foi Gustavo ­Bebbiano, secretário-geral da Presidência nos dois meses iniciais da gestão Bolsonaro. Contou-a em março de 2020, em uma entrevista. Morreu 12 dias depois. Ramagem levou para a Abin policiais federais e militares da sua confiança e do clã. Esse grupo operou o serviço “paralelo”. “O que os fatos revelam são ­pessoas externas às carreiras de Inteligência inseridas no órgão para atuar de forma não republicana”, ressalta a Intelis, entidade dos servidores da agência.

Depois de concordar com a venda do kit de joias, o ex-presidente desistiu por considerar o preço baixo – Imagem: Redes sociais

Sob Ramagem, conforme investigações atuais, agentes a serviço da Abin tentaram proteger Jair Renan, outro filho de Bolsonaro, em uma apuração da mesma PF, abandonada em 2021, sobre tráfico de influência. No caso das “rachadinhas” de Flávio, prepararam linhas de defesa, conforme relatos do jornalista Guilherme Amado de dezembro de 2020. E, de acordo com a Operação Última Milha, tentaram desmoralizar três auditores fiscais que teriam dado dicas “indevidas” ao Coaf. Um policial federal, Marcelo Bormevet, e um sargento do Exército, Giancarlo Gomes Rodrigues, foram presos preventivamente em 11 de julho, por ordem de Moraes, por terem, entre outras coisas, tentado desmoralizar os auditores. Em mensagem de WhatsApp em 20 de novembro de 2020, Bormevet pediu a Rodrigues que fosse atrás de “podres e relações políticas” de três servidores, Christiano José Paes Leme Botelho, Cleber Homem da Silva e José Pereira de Barros Neto. Valia até vasculhar redes sociais das esposas.

O bolsonarismo agora usa esse método contra Fabio Alvarez Shor, delegado encarregado de três inquéritos, das joias, da falsificação de cartão de vacinas e da tentativa de golpe. Em 14 de julho, o senador Marcos do Val publicou nas redes sociais uma espécie de encomenda ao pecus. “Este delegado, até então desconhecido, tem se ocultado das redes sociais, mas o Brasil precisa conhecer quem é o executor das ordens ilegais de Alexandre de Moraes”. Duas entidades representativas dos federais, a ADPF e a Fenapol, divulgaram notas em defesa de Shor.  A ADPF afirma estudar medidas cabíveis de proteção ao policial.

No caso de socorro ao filho encrencado, Bolsonaro, tudo indica, também incorreu nos crimes de advocacia administrativa e tráfico de influência

Segundo um experiente delegado federal, o bolsonarismo ataca um indivíduo, e não a corporação, pelo fato de haver, nos quadros da PF, simpatizantes do capitão. A estratégia de acuar e amedrontar Shor, diz, pode dar certo e levá-lo a abandonar os casos. Funcionou com a delegada que o antecedeu no comando do inquérito das milícias digitais, Denisse Ribeiro, atualmente chefe da segurança do Superior Tribunal de Justiça. Se ninguém quiser presidir os inquéritos contra Bolsonaro, afirma o delegado, acaba a capacidade investigativa de Moraes. “Esperar serenidade e bom-senso dessa Polícia Federal, que são as cadelas do Alexandre de Moraes, não dá mais”, afirmou Eduardo Bolsonaro em uma entrevista recente a um jornal bolsonarista do Paraná. A propósito, o experiente delegado acredita que a gravação de Ramagem da reunião de Bolsonaro de agosto de 2020 sobre o “caso Flávio” mostra que no governo do capitão ninguém confiava em ninguém. Ele lembra ainda o costume de antigos serviços de inteligência de gravarem tudo para fazer chantagem. O ataque se intensificou logo após Shor finalizar a apuração do caso das joias e acusar Bolsonaro de peculato.

Há ao menos duas situações bem complicadas para o ex-presidente. A primeira foi a venda, em junho de 2022, de dois relógios por 68 mil dólares, cerca de 360 mil reais na cotação atual. Os relógios eram presentes da Arábia Saudita (um Rolex) e do Bahrein (um Patek Philipe). Quem tratou da venda foi o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-chefe dos ajudantes de ordem de Bolsonaro na Presidência e convertido em delator do esquema. Dados bancários, depoimentos de Cid e fotos mostram que o dinheiro entrou na conta do general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do delator, e foi entregue a Bolsonaro aos poucos. A primeira parcela, cerca de 30 mil dólares, em setembro de 2022, em Nova York. O resto, em fevereiro e março de 2023, com Bolsonaro já nos EUA e fora do poder. “O dinheiro seria entregue sempre em espécie de forma a evitar que circulasse no sistema bancário”, concluíram os investigadores. Modo comum de se lavar dinheiro.

O delegado Shor tem sido perseguido por bolsonaristas. Gonet prefere agir com cautela – Imagem: Redes sociais e Leo Bark/MPF

A outra situação foi a tentativa frustrada de Cid de realizar uma segunda venda, via leilão online em fevereiro de 2023 organizado por uma empresa de Nova York. Tratava-se de um kit com um relógio Chopard, anel, caneta, par de abotoaduras e rosário islâmico, outro presente dos sauditas. Às vésperas do leilão, Cid mandou uma mensagem de celular a Bolsonaro na qual informava o andamento do negócio. A resposta do capitão foi “Selva”, palavra usada por militares para dizer coisas como “ok”, “é isso aí”, “vamos em frente”. O preço do conjunto: 120 mil dólares, perto de 640 mil reais. Segundo um e-mail do ex-ajudante de ordens à empresa do leilão, de 22 de fevereiro de 2023, Bolsonaro desistiu da venda por considerar o valor muito baixo.

Duas semanas após o e-mail, explodiu o escândalo das joias. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, a Receita Federal havia retido no aeroporto adornos femininos transportados por um assessor do almirante Bento Albuquerque, então ministro de Minas e Energia. É de se supor que as joias ficariam com ­Michelle. A poucos dias de partir para os EUA e deixar a Presidência, Bolsonaro falou duas vezes (uma pessoalmente, outra por telefone) com o secretário da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes, substituto de Tostes. Pediu a Gomes para liberar os presentes. Não conseguiu. •

Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O vício do peculato’

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Última Atualização: 18/07/2024