O mês de junho nos trouxe dois encontros-chave que abordaram a conjuntura geopolítica: o dos ministros de Relações Exteriores dos BRICS, na Rússia, e o dos chefes de estado do G7, na Itália. Ambos foram parte de cadeias de encontros correlatos: o dos ministros, parte de uma série de encontros temáticos realizados também na Rússia que, neste ano, exerce a presidência do grupo; o dos chefes de estado foi o pontapé inicial de dois outros encontros, o da Suíça sobre a guerra na Ucrânia, ainda em junho, e o da OTAN, nos Estados Unidos, no mês de julho.

Os dois encontros em tela terminaram com o lançamento de comunicados oficiais. Entre eles houve várias semelhanças e uma diferença fundamental. As semelhanças ficaram por conta de muitos dos temas abordados, como mudança climática, desenvolvimento sustentável, a Palestina e o Oriente Medio, saúde e alimentação, condições de trabalho e questões de gênero, dentre uma infinidade de outros. A diferença fundamental ficou por conta do sumo que se extrai de cada um, ao se espremer a retórica de ambos. No caso dos ministros dos BRICS, o sumo é a paz; no caso dos chefes de estados do G7, o sumo é a guerra.

Comecemos pelo segundo. A declaração do G7, do começo ao fim, é uma declaração informal de guerra à Rússia. Digo “informal” porque nele não consta uma declaração formal de guerra, embora a Rússia seja o alvo número um da belicosidade que emana do comunicado. Já de começo se declara abertamente a intenção de aplicar futuros dividendos das reservas russas congeladas no Ocidente, sobretudo na Europa, em benefício do armamento militar e da futura “reconstrução” da Ucrânia.

Trocando em miúdos e graúdos, isto quer dizer que a atual (des)ordem geopolítica mundial veio para ficar, capitaneada ali por alguns governos moribundos, como o conservador no Reino Unido, que caiu logo em seguida, o dos Estados Unidos, acometido de senilidade galopante e ameaçado por uma espécie de Al Capone topetudo e atrevido, ou o da França, debilitado pela derrota acachapante na eleição para o Parlamento Europeu e somente mal e mal soerguido pela frente eleitoral com as esquerdas na seguinte eleição parlamentar interna, ou ainda o da Alemanha, também abalado pela derrota no pleito europeu e com seu prestígio interno se esvaindo pelo ralo.

Já o tom do documento dos BRICS, cujo grupo está em expansão, é inteiramente outro. Ele exalta o multilateralismo nas relações internacionais como vetor de equilíbrio, paz, segurança e cooperação entre as nações no exercício de sua soberania.

A seguir vai destacando algumas mudanças na atual (des)ordem internacional para que aquele multilateralismo se consolide como estilo dominante na nova ordem que deverá emergir. Listo algumas delas. O documento exalta a ONU como espaço privilegiado de negociação, recomendando ao mesmo tempo uma mudança especial em seu estatuto, com a atualização de seu Conselho de Segurança, ampliando o número de membros permanentes.

O documento também exalta o G20 (ao invés do G7) como o “fórum primeiro”, ou seja, privilegiado, em matéria de assegurar a cooperação internacional. Os ministros pedem a construção de uma nova “arquitetura financeira” mundial, o que inclui a reforma do Fundo Monetário Internacional, a progressiva inclusão de moedas nacionais além do dólar norteamericano nas negociações entre os países, a suspensão de sanções unilaterais que potencialmente desorganizam o fluxo econômico mundial.

Exortam o Novo Banco para o Desenvolvimento (NBD), criado pelos BRICS e hoje presidido pela ex-presidenta brasileira Dilma Rousseff, a se tornar um vetor especial para construir estas mudanças nas relações internacionais. Exaltam a diplomacia como meio de negociação e de pacificação dos conflitos internacionais. Defendem que a maior participação de mulheres nas negociações é fundamental para assegurar e consolidar a paz como seu objetivo.

Como o documento de G7, o documento dos ministros manifesta grave preocupação humanitária na Palestina, defende a solução dos dois estados, mas avança mais, pedindo a inclusão da Palestina como membro efetivo da ONU.

Ambos os documentos compartilham outras preocupações, como com a guerra civil no Sudão, com o Afeganistão, o Haiti, o desenvolvimento africano, com o narcotráfico e com o terrorismo internacional (embora deva haver alguma divergência sobre onde aplicar o termo), o controle ou o descontrole da internet e de todo o espaço cibernético.

A leitura de ambos os documentos provocou-me a lembrança de um romance fundamental em minha formação: Narciso e Goldmund, de Herman Hesse. Publicado em 1930, diante da ascensão do nazismo na Alemanha e na Europa, o romance se passa na Baixa Idade Média, durante a pandemia da Peste Negra, em torno da amizade e mútua admiração que unem um jovem seminarista, Goldmund, e seu mestre Narciso. Goldmund erra por uma Europa em que um mundo, incluindo seus valores, naufraga, e outro emerge. Sabe-se muito bem o que está naufragando, mas não se conhece muito bem o que está emergindo: a busca deste discernimento, que ele mesmo não tem, é o que mestre Narciso tenta motivar em seu discípulo viajor.

A analogia fica por aqui. Estamos presenciando o estado falimentar de uma (des)ordem mundial, baseada na livre especulação financeira e no unilateralismo, ao mesmo tempo em que se discerne o anseio por uma nova ordem que afirme o multilateralismo, sem que se saiba ainda a que trilhas isto nos levará.

O drama maior é que, como de costume, os capitães da ordem que soçobra possam recorrer à guerra generalizada como uma suicida bóia de suposta salvação de seu mando e império.

Uma advertência: para mim isto não faz dos BRICS um poço de virtudes, pelo contrário. Muita coisa deve também mudar nestes países para que eles possam vir a ser reais vetores de uma nova ordem baseada no equilíbrio da paz.

Mas há uma diferença entre eles o o G7. Gloso um outro romance, O Leopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, e sua famosa adaptação cinematográfica, de Luchino Visconti. Lendo o documento do G7 pensei numa variante da famosa frase do jovem Tancredi Falconieri (Alain Delon) para seu tio, Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina (Burt Lancaster): “As coisas têm de mudar, para que permaneçam como estão”. Já o documento dos BRICS me sugeriu: “Temos que mudar algumas coisas, para que tudo comece de fato a mudar”.

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Última Atualização: 16/07/2024