Nem tudo está perdido na campanha de Joe Biden
por Luís Carlos
Episódios como o que aconteceu no último sábado nos EUA em que o candidato a presidente Donald Trump sofreu uma tentativa de assassinato têm o potencial de fazer surgir, de todos os lados, os “gênios” do profetismo político. Para os mais afoitos, após o atentado, a eleição, que supostamente já tendia para Trump, está decidida a seu favor. Por outro lado, uma gama de negacionistas vão ao extremo de questionar a veracidade do próprio atentado. Uma coisa é fato, houve sim um atentado contra Trump. Se isso fez parte ou não de algum tipo de esquema mentiroso para beneficiar o candidato da extrema direita isso dificilmente (nem mesmo com finalização de investigação policial) saberemos. Mas, no fundo, isto é o que menos importa para a realpolitik.
O fato é que temos uma das mais acirradas corridas eleitorais da história americana, ampliada em vários graus pela atual conjuntura de ascensão de uma extrema direita mundial. A Inglaterra e a França, de certa forma, refrearam momentaneamente os ânimos de seus extremistas, mas a Argentina entronizou o nonsense e manteve a agenda reacionária em alta. Por aqui o bolsonarismo, ainda que fazendo água diante das recentes ações da Polícia Federal, segue fazendo valer a estratégia de vomitar escatologias nas redes sociais, propagar fake news e manter sua malta de parlamentares tresloucados agitando as redes sociais, e a própria tribuna do congresso, com o discurso de uma agenda de costumes completamente distanciada da vida real da maioria dos brasileiros.
Mas este artigo não está sendo escrito para falar de Brasil, mas de Estados Unidos da América. Aquela que segue equivocadamente sendo chamada de maior democracia do mundo ou terra das liberdades. Muito pelo contrário, o que temos visto nos últimos anos é a completa decadência política, econômica e moral do outrora grande império do norte. Nesse caso, todos os elementos que estão envolvendo a atual corrida eleitoral americana são, tão somente, a expressão real dessa decadência. Desde o último debate, em que um Joe Biden visivelmente inábil não conseguiu sequer se defender das acusações mais rasas do seu desqualificado opositor, até o atentado do último sábado, a corrida eleitoral americana segue simbolizando o funcionamento de um sistema bipartidário em franca decadência moral.
O que vou refletir nas linhas que se seguem sobre a campanha eleitoral americana pode servir de lição para a própria esquerda brasileira (ou progressistas de modo geral) diante de nossa oposição de extrema direita. Antes, porém, parto da premissa brasileira como referência. Desde o início do governo Lula tenho defendido que o enfrentamento do governo (o que inclui principalmente o presidente Lula e seus discursos improvisados) diante do bolsonarismo deve ser o do contraponto de projetos de governo e de sociedade. Olhar sempre para o futuro do país, agindo como um verdadeiro estadista e colocando-se acima das filigranas da politicagem rasteira que tomou conta de nossa vida política depois da ascensão do bolsonarismo.
Diante de uma realidade que se aproxima, em alguns momentos, de um conflito entre a civilização e a barbárie, o governo Lula deve matizar, com exemplos concretos de ideias e ações, as diferenças entre o Brasil reacionário e o Brasil progressista. Lula deve comunicar diretamente a sua mensagem de forma objetiva e didática e mostrar-se aos olhos do povo como um misto de realizador de obras e estadista, sempre matizando a ideia de um Brasil que pensa no futuro e que se propõe ser mais justo economicamente e mais sensível socialmente. O presidente/governo deve falar para a sociedade como um todo, partindo da premissa de que as minorias, que já se encontram como parte do todo, seguem tendo assegurado o direito de defenderem suas pautas a partir de suas próprias representatividades. Mas o verdadeiro estadista fala para a nação. Na sociedade já existem instituições e movimentos que falam de forma segmentada, não é esta a função do estadista. A função do estadista é apresentar ao povo, em sua totalidade, um projeto de país a longo prazo. É construir consensos em torno de grande ideias estruturais como os fizeram Getúlio Vargas com o “petróleo é nosso” e JK com os “50 anos em cinco”. Lula não deve se rebaixar à politicagem rasteira e abjeta tão bem praticada pelo bolsonarismo.
Com base neste preâmbulo brasileiro, reflito agora sobre o que entendo restar à campanha de Joe Biden (após o atentando do sábado) para ainda acreditar em uma possibilidade de vitória. O primeiro movimento é o de retirar-se do ringue em que se transformou a campanha eleitoral e estabelecer para os americanos as diferenças claras de uma ideia de nação mais justa e equânime que o separa do trumpismo. É a hora de Biden falar como estadista/candidato e não somente como candidato. Apresento trecho de seu discurso do último domingo proferido à nação do Salão Oval da Casa Branca:
“Quero falar com vocês hoje à noite sobre a necessidade de baixarmos a temperatura em nossa política. Temos discordâncias. Política não é campo de morte. Enfrentamos um desafio. As paixões ficam elevadas. Vou continuar defendendo o Estado de Direito. É assim que democracia deve funcionar. Decidimos nossas diferenças no voto, não com bala”.
A estratégia nos parece a mais correta. Se Joe Biden ainda quer se manter competitivo (não estou entre aqueles que já jogaram a toalha) essa deve ser a nova estratégia de sua campanha. O trumpismo, tal qual o bolsonarismo, funciona com a lógica do comportamento de seita, logo, uma parcela do eleitorado, independentemente de qualquer análise racional da realidade, já está fossilizada. Contudo, uma sociedade é composta por outros segmentos de pessoas que podem ser captadas por um discurso que respondam aos seus interesses de sobrevivência em meio ao mundo real. Ao negar os benefícios de um Estado de bem estar social e renegar o impacto social de questões como imigração, a extrema direita pode ser neutralizada por um discurso de paz, de equidade social e econômica e de civilidade.
Se Biden conseguir matizar essa diferença civilizacional entre ele e seu opositor, o atentado sofrido por Trump pode, inclusive, ser transformado (vide campanha armamentista) em um episódio de alguém que experimentou de seu próprio veneno. Cabe a Joe Biden e seus assessores de campanha apresentarem ao eleitorado americano (os que ainda estão indecisos e podem decidir as eleições) um EUA que busque a conciliação entre um passado que criou a ideia de “maior democracia do mundo” e um presente que segue respeitando e defendendo esse legado. Trump, por diversos motivos que não podem ser totalmente apagados diante da estratégia do vitimismo que será alegado por sua campanha, segue sendo visto por grande parte do establishment americano como uma ameaça a esta ideia de democracia americana.
Não sejamos ingênuos, Trump responde a vários processos e tem vários esqueletos no armário o que fazem dele sempre, em última instância, muito mais uma ameaça do que um benfeitor da democracia americana. O eleitor americano, não obstante todas as decepções causadas por um governo democrata, pode resolver não querer pagar para ver, como o fez o eleitor brasileiro em nossa última eleição. Em suma, tal qual no futebol, em uma eleição o resultado só pode ser comemorado quando o juiz apita o final do jogo. O saudoso Dr. Ulisses Guimarães dizia que a política se parece com as nuvens. Cada vez que você olha, vê uma coisa diferente. Esta semana as nuvens podem apresentar um retrato favorável a Donald Trump, mas nada garante que não possa mudar até a eleição. Não sou profeta, e posso até acreditar que os ventos, de maneira geral, sopram a favor de Trump, mas trinta anos acompanhado a política brasileira me ensinaram a ser cauteloso em relação a profecias. Ou seja, nem tudo está completamente perdido pelas cercanias do comitê eleitoral democrata.
Luis Carlos – Historiador