Em 1823, James Monroe anunciou ao mundo a ideia da “América para os americanos”. Soava como proteção contra impérios europeus, mas trazia, nas entrelinhas, um aviso silencioso aos vizinhos do sul: alguém passaria a vigiar o quintal. O tempo tratou de revelar que “americanos”, naquela frase, tinha um significado bastante específico.
Décadas depois, a promessa de soberania continental foi se transformando em doutrina de tutela. O que começou como discurso diplomático virou prática recorrente de intervenção, direta ou indireta, sempre que um governo latino-americano ousava caminhar fora da trilha aceita por Washington.
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O sorriso da boa vizinhança
No século 20, Franklin Roosevelt atualizou o velho princípio com a chamada política da boa vizinhança. Menos fuzis à vista, mais cinema, música, empréstimos e influência cultural. Era o tempo do soft power: convencer antes de impor. Mas o sorriso diplomático não apagou a lógica central — a de conter projetos políticos que desafiassem a hegemonia norte-americana.
Quando a persuasão falhava, outros métodos entravam em cena.
A mão invisível
Fundada em 1947, a CIA tornou-se o instrumento preferencial dessa engrenagem. Muitas vezes longe dos holofotes, a agência operou nos bastidores da América Latina, misturando espionagem, propaganda, financiamento político e apoio militar.
No Brasil, essa mão invisível ganhou contornos nítidos em 1964. A Operação Brother Sam, que chegou a mobilizar um porta-aviões, foi o seguro de vida externo do golpe que instaurou a ditadura. O recado era claro: quando a democracia ameaçava contrariar interesses estratégicos, ela se tornava descartável.
Laboratórios do golpe
A Guatemala foi um dos primeiros ensaios bem-sucedidos. Em 1954, o governo progressista de Jacobo Árbenz caiu após uma operação que combinou suborno de militares, campanhas de desinformação e pressão diplomática. Segundo William Blum, autor de ‘The Cia: A Forgotten History’, o método virou manual para futuras intervenções.
Na então Guiana Britânica, a receita se repetiu: financiamento de opositores, instabilidade política e o enfraquecimento de Cheddi Jagan, eleito com uma plataforma popular. Não era ainda a Guerra Fria em seu auge, mas já se ensaiava o roteiro.
Cuba, o trauma permanente
Com a Revolução Cubana, o intervencionismo ganhou obsessão. Embargos, sabotagens, tentativas de assassinato e a invasão fracassada da Baía dos Porcos compuseram um capítulo que o historiador Michael Grow, professor na Universidade de Ohio, em seu livro U.S. Presidents and Latin American Interventions, definiria como “um fracasso perfeito”. Ainda assim, o episódio consolidou a disposição dos EUA de ir até o limite para impedir que um projeto socialista prosperasse no continente.
Ditaduras sob medida
Nos anos 1960 e 1970, a lógica se espalhou. No Equador, no Peru, no Chile, no Uruguai, na Argentina, a CIA esteve presente — treinando forças de segurança, financiando campanhas, legitimando golpes. No Chile, milhões de dólares ajudaram a pavimentar o caminho para a queda de Salvador Allende e a ascensão do sanguinário Pinochet. Na Argentina, o “sinal verde” de Kissinger ecoou em milhares de desaparecimentos forçados.
A retórica era sempre a mesma: combate ao comunismo, defesa da ordem, proteção do mundo livre. O resultado também: democracias interrompidas, sociedades traumatizadas, gerações marcadas pelo medo.
Uma história que insiste em voltar
Na República Dominicana, tropas permaneceram até 1966 para garantir que a mudança política não escapasse do controle. Episódios assim compõem um mosaico que atravessa décadas e fronteiras, ligando golpes, ditaduras e intervenções sob um mesmo fio condutor.
Hoje, quando novas tensões surgem no continente, a memória histórica se impõe. A América Latina aprendeu, a duras penas, que o discurso da proteção quase sempre veio acompanhado da prática da dominação. A sombra do intervencionismo é longa — e continua projetada sobre o presente.