Rubem Braga nunca precisou levantar a voz para ser ouvido. Preferia a conversa mansa, quase um sussurro, como quem chama o leitor para sentar à sombra de uma árvore e observar o tempo passar. Há 35 anos, quando escolheu morrer do mesmo modo como escolheu viver — sem espetáculos, sem pressa e sem concessões —, deixou ao país não apenas mais de 15 mil crônicas, mas uma maneira de existir na literatura.
Morreu sozinho, em seu apartamento em Ipanema, depois de se despedir de amigos e de aceitar a morte como quem aceita o vento que muda de direção. Em seus últimos textos, escreveu sobre a insignificância do eu diante do mundo — não como desespero, mas como libertação. Era seu humanismo mais radical: retirar o ego do centro para devolver protagonismo à vida.
A grandeza do pequeno
Antes de Braga, a crônica era vista como um gênero menor, um intervalo entre notícias mais “importantes”. Depois dele, tornou-se morada definitiva da literatura brasileira. Não por acaso, críticos e escritores costumam dividir o gênero em “antes e depois de Rubem Braga”.
Sua revolução não veio pelo excesso, mas pela economia. Frases curtas, vocabulário límpido, temas aparentemente banais: um passarinho, uma amendoeira, o Natal solitário, o mar visto da janela. Mas ali, no que parecia pequeno, morava o essencial. Braga ensinou que o cotidiano é o grande palco da condição humana — basta saber olhar.
Humanismo sem discurso
O humanismo de Rubem Braga não se manifesta em tratados, slogans ou discursos morais. Ele surge na empatia silenciosa com figuras anônimas, na ternura pelos que passam despercebidos, na atenção quase reverente à natureza. Seus textos não explicam o mundo; acolhem-no.
Há quem diga que não há mais espaço na imprensa para isso. Em tempos de soluços entre lulismo e bolsonarismo, trumpismo e genocídio, haters do twitter e viralização no tiktok, parece desinteressar o debruçar sobre passarinhos, a praia, a borboleta, o pão quentinho de cada manhã, o sublime. Mas é bom lembrar que Braga escreveu entre o levante armado contra Getúlio em 1932, chegando a ser preso; foi correspondente de guerra da FEB na Itália, além de atravessar a censura da ditadura militar e a hiperinflação da redemocratização. Mesmo assim, a poesia sempre esteve lá.
“Sou um homem sozinho, numa noite quieta”, escreveu, e nessa solidão não havia isolamento, mas escuta. Braga escrevia como quem presta homenagem ao outro — fosse gente, fosse bicho, fosse paisagem. Em tempos de opiniões estridentes, sua literatura permanece como um convite à delicadeza.
O cronista que escolheu ser cronista
Formado em Direito, diplomata por circunstância, correspondente de guerra por dever, Rubem Braga só quis ser, de fato, cronista. Não ambicionou o romance total, nem o grande ensaio. Fez da crônica o gênero de sua vida e, ao fazê-lo, deu a ela estatura literária definitiva.
Influenciou poetas, prosadores, jornalistas. Bebeu do Modernismo, mas foi além: trouxe oralidade, lirismo e humanidade para as páginas dos jornais. Transformou o espaço efêmero da imprensa em território duradouro da literatura.
O sabiá continua cantando
Trinta e cinco anos depois de sua partida, Rubem Braga segue atual — talvez ainda mais necessário. Num mundo apressado, polarizado e barulhento, sua obra resiste como um gesto de calma. Lê-lo é reaprender a olhar, a sentir e a silenciar.
Se a crônica brasileira mudou depois dele, como tantos afirmam, é porque Braga provou que a literatura não precisa ser grandiosa para ser grande. Basta ser humana. E nisso, poucos foram tão altos quanto ele. Em 12 de janeiro próximo, o escritor capixaba completaria 113 anos, se não tivesse parado definitivamente de escrever em 19 de dezembro de 1990.
Para entender um estilo tão influente na literatura, fica aqui uma de suas crônicas mais marcantes, O padeiro, de 1956:
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
“Então você não é ninguém?”
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não, senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
E assobiava pelas escadas.
Rio, maio, 1956.
— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Global, 2019