Brasil avança, mas impunidade aos crimes da ditadura ainda desonra democracia

Negligenciada durante os últimos governos de direita, a busca por memória, verdade e justiça relativa aos mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar foi retomada no terceiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora ainda haja muito o que ser feito nessa área, em 2025 passos importantes foram dados para a garantia desses direitos.

O sucesso de “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles) — que conta a história da família do deputado Rubens Paiva e saiu vencedor do Oscar 2025 como Melhor Filme Internacional — embalou uma onda de curiosidade pelo tema nas novas gerações e aumentou a pressão da sociedade por mais ações do poder público. Esse processo contribui para fortalecer uma luta que, para o grande público, parecia esquecida.

Ao longo do ano, novas medidas e sinalizações de familiares, movimentos sociais e políticos, governos e órgãos da Justiça reafirmaram que parte da sociedade não está disposta a esquecer o que foi a ditadura e que o Brasil não pode deixar o assunto morrer, para o bem de sua própria democracia.

A trama golpista que culminou no 8 de Janeiro de 2023, o julgamento e condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e militares de alta patente por tentativa de golpe — algo inédito no país — e, por outro lado, a busca da extrema direita pela impunidade dessas lideranças mostram que esse é um terreno em constante disputa e que a democracia precisa ser preservada e fortalecida cotidianamente.

Mortos e desaparecidos

Nesse cenário, 2025 se encerra tendo como uma das principais e mais recentes ações a realização do 2º Encontro Nacional de Familiares de Pessoas Mortas e Desaparecidas Políticas durante a Ditadura Militar Brasileira (Enafam), no início de dezembro.

O evento também marcou os 30 anos de criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e fez a entrega de 26 novas certidões de óbito retificadas de pessoas mortas e desaparecidas pela ação do regime militar.

Saiba mais: Governo entrega mais 26 certidões de óbito retificadas de mortos pela ditadura

Até agora, 191 documentos corrigidos foram disponibilizados em atos oficiais feitos pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, ao qual a Comissão está vinculada.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em 2014, reconheceu a existência de ao menos 434 mortos pela ditadura, boa parte dos quais permanece desaparecida. Destes, ao menos 70 fizeram parte da Guerrilha do Araguaia, do PCdoB.

Ao final do 2º Enafam, familiares de pessoas mortas e desaparecidas lançaram a Carta de Brasília, na qual reivindicam ações para acelerar as buscas dos remanescentes ósseos e por memória, verdade e justiça sobre o período ditatorial.

Saiba mais: Ataques à democracia e aos direitos humanos são herança da impunidade à ditadura

Entre outros pontos, a carta reafirma “a necessidade de atribuir à Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979) uma interpretação restritiva, de modo a definir o seu real alcance, excluindo de seus efeitos a possibilidade de que torturadores e outros perpetradores de graves lesões a direitos
humanos tenham seus crimes ‘perdoados’ ou ‘apagados’”.

Além disso, reivindica “a recepção de novos requerimentos para fins de reconhecimento de pessoas mortas em consequência da situação política nacional compreendida no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, especialmente aquelas cujas mortes ocorreram no campo, nas florestas, em comunidades quilombolas, ribeirinhas,
LGBTQIA+ e em periferias urbanas”.

Também exige a abertura integral, a preservação e a disponibilização dos arquivos relacionados ao período da ditadura militar (1964–1985), incluindo documentos das Forças Armadas, órgãos de segurança e inteligência, bem como registros sobre perseguições, prisões, torturas e mortes”.

Retificação de Certidões de Óbito

Marco importante neste ano, o governo Lula entregou oficialmente, até agora, 191 novas certidões de óbito dos mortos pela ditadura. A ação decorre de decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de dezembro de 2024, encampada e viabilizada pelo MDHC.

Desde essa decisão, as certidões passaram a ter, como causa, a morte “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

À primeira vista, a mudança na descrição da causa da morte pode parecer mera questão burocrática. Mas não no Brasil, onde não houve um processo de justiça de transição da ditadura à democracia que garantisse o julgamento e a punição dos responsáveis pelos crimes cometidos, nem ações de memória e verdade que não deixassem dúvidas à sociedade e às futuras gerações de que o período foi marcado por práticas brutais, feitas de maneira planejada e sistemática por agentes do Estado a mando dos ditadores de plantão.

Vala de Perus

Outro passo fundamental nesse sentido foi a identificação de duas ossadas encontradas na Vala de Perus, em São Paulo, local onde a ditadura enterrou clandestinamente muitas de suas vítimas ao longo de anos.

Em abril, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) anunciou a identificação de Grenaldo de Jesus da Silva e Denis Casemiro. A identificação das ossadas é parte de um trabalho conjunto do MDHC, da Unifesp — por meio do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) —, e da Prefeitura de São Paulo.

Lugares de Memória

Ainda por meio do MDHC, o governo Lula lançou a publicação “Lugares de Memória da Ditadura Militar”, que reúne e documenta espaços marcados pela repressão e pela resistência durante a ditadura no Brasil.

A iniciativa faz parte da nova seção “Memória e Verdade” do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma do MDHC que reúne indicadores e evidências sobre direitos humanos no país.

A publicação mapeou, até abril, quando foi lançada, 49 locais históricos da ditadura militar em diferentes regiões do Brasil, destacando sua relevância no processo de preservação da memória e da democracia.

Judiciário

Para além dessas ações do governo Lula, 2025 também teve sinalizações positivas de outros órgãos públicos.

Em fevereiro, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que vai analisar se a Lei da Anistia de 1979 alcança os crimes de ocultação de cadáver cometidos durante a ditadura militar e que permanecem até hoje sem solução.

O caso concreto que pode gerar a revisão envolve a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) no Pará, apresentada em 2015, contra os tenentes-coronéis do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel, acusado de matar, em 1973, três opositores ao regime militar e de ocultar seus restos mortais, e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, acusado de atuar na ocultação dos cadáveres entre 1974 e 1976, no contexto Guerrilha do Araguaia.

Saiba mais: Lei da Anistia é incompatível e deve ser revista, diz relator da ONU

A denúncia foi rejeitada pela Justiça Federal no Pará com base na Lei da Anistia (Lei 6.683/1979). Pleiteada com o objetivo de “perdoar” os presos e perseguidos políticos, a redação da lei acabou beneficiando agentes da ditadura, que ficaram impunes até hoje.

A decisão também se baseou no entendimento do STF que, em 2010, revalidou a interpretação prevalente sobre a anistia, e foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). O MPF, então, recorreu ao Supremo.

Em fevereiro, ao se manifestar sobre caso, o ministro Flávio Dino destacou que a questão não envolve proposta de revisão da decisão de 2010, mas a delimitação do alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver, em que a ação se prolonga no tempo.
A posição do relator foi seguida por unanimidade, mas até o momento o caso, que pode ter repercussão geral, não foi julgado. Se houver mudança nesse entendimento, abrem-se novas portas para o país avançar na luta por justiça.

No mesmo mês, o STF também sinalizou que vai analisar se a mesma lei se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante a ditadura militar. A repercussão geral da matéria foi reconhecida pela Corte em processos que apuram as circunstâncias da morte do ex-deputado Rubens Paiva e de outros dois opositores ao regime.

Em julho, a CGU (Controladoria-Geral da União) determinou que o Exército compartilhasse informações sobre oito militares acusados de ligação com o desaparecimento e morte do ex-deputado; no entanto, o Exército apresentou recurso contra a decisão e ainda não houve novos desdobramentos.

Comissão de Memória e Justiça do PCdoB

Em meio a esses avanços, o PCdoB — partido que teve mais mortos pela ditadura — decidiu, em abril, formar sua Comissão de Memória e Justiça.

A instância foi criada como forma de viabilizar ações concretas, junto ao governo, instituições e movimentos envolvidos com o tema, para contribuir, buscar justiça e tornar os crimes da ditadura mais conhecidos da população. Visa também encontrar e entregar aos familiares os restos mortais daqueles que tombaram frente à perseguição do Estado autoritário que vigorou após o Golpe de 1964.

Saiba mais: STF aceita recursos sobre homicídios cometidos por agentes da ditadura

Entre as ações encaminhadas pela instância está reunião com a ministra do MDHC, Macaé Evaristo, em maio, no qual foi levado um conjunto de reivindicações, entre as quais a abertura dos arquivos do Exército, a retomada das buscas pelas ossadas dos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, bem como a aceleração do trabalho de identificação dos 28 remanescentes ósseos que encontram-se na Universidade de Brasília (UnB) há mais de 20 anos sem terem sido analisados.

Em seu 16º Congresso, em outubro, o partido homenageou os mortos e desaparecidos, reafirmando seu compromisso com essa luta.

Artigo Anterior

Assinatura do Acordo Mercosul-União Europeia é adiada para janeiro

Próximo Artigo

O rastro do dinheiro chega aos gabinetes

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!