Participação do MST no Seminário Internacional sobre Abolicionismo na Cidade do Cabo, África do Sul

Foto: Divulgação

Por Rosa Negra*
Da Página do MST

A liberdade não é um princípio abstrato,
mas um lugar.
Um território a ser disputado”

– Ruth Gilmore

Entre os dias 11 e 16 de dezembro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) participou do Seminário sobre Abolição Internacionalista, realizado na Cidade do Cabo, na África do Sul. A presença do MST é fruto de um processo contínuo de colaboração com Movimentos Populares, militantes brasileiros e a renomada geógrafa marxista e abolicionista Ruth Wilson Gilmore. Esta parceria foi fortalecida pelo lançamento do livro Califórnia Gullag na livraria da Editora Expressão Popular e pela visita de Gilmore à Escola Nacional Florestan Fernandes, consolidando um diálogo entre a luta pela terra e o pensamento abolicionista.

O principal objetivo do encontro foi o estabelecimento de diálogos transnacionais, a articulação de resistências e a construção de uma potente rede internacionalista abolicionista, capaz de enfrentar as múltiplas facetas do capitalismo racial e do encarceramento em massa.

O encontro foi estrategicamente dividido em dois espaços que simbolizam a conexão entre a academia e a luta popular. Nos três primeiros dias, os debates ocorreram na Universidade do Cabo, e nos dias restantes, na Ocupação Cisse Gool House, uma ocupação urbana que representa a resistência concreta na cidade. Além disso, houve uma manhã voltada para conhecer a cultura de resistência, através dos murais em Salt River.

Na programação de estudos, foram feitos debates em torno de temáticas como Punição nas Periferias Globais, trazendo uma análise de como os sistemas punitivos afetam desproporcionalmente comunidades marginalizadas; Abolição e Violência Organizada: Debatendo a relação intrínseca entre o encarceramento e as estruturas de violência estatal; e “Onde está o internacionalismo de esquerda agora?”, refletindo sobre os desafios e as possibilidades da solidariedade internacional, entre outras temáticas.

O encontro reuniu um grupo notável de intelectuais orgânicos e orgânicas, militantes de diversas partes do mundo, e os debates foram organizados em mesas temáticas que conectam diferentes realidades de luta contra o sistema punitivo e o capitalismo racial. A seguir, uma síntese das principais discussões.

Fronteiras, Crises e a Gestão Punitiva das Populações

Foto: Divulgação

Um dos eixos centrais do debate foi a análise dos regimes de fronteira como ferramentas para o controle de populações tornadas móveis e descartáveis pelas crises do capitalismo. Discutiu-se como imigrantes e estudantes (especialmente em solidariedade à Palestina) se tornaram alvos preferenciais de políticas de criminalização, detenção e vigilância. O racismo foi identificado como a lógica que atravessa e legitima essas práticas.

Os/as participantes denunciaram o uso de acordos de imigração como uma forma de “diplomacia coercitiva”, onde a vida humana se torna moeda de troca em negociações comerciais e geopolíticas, como as disputas por minerais raros. A crise imigratória foi definida não como um acidente, mas como uma gestão deliberada da mobilidade do trabalho no contexto do capitalismo racial, que racializa e precariza trabalhadores e trabalhadoras da periferia global. A expansão do complexo industrial-prisional e militar foi diretamente associada a essa “gestão de crises”, consolidando um verdadeiro regime de guerra contra a população considerada excedente.

Encarceramento em Massa e a Realidade Brasileira

A situação do Brasil recebeu destaque, sendo apresentada como um caso emblemático de encarceramento em massa e violência estatal. Com mais de 700 mil pessoas presas e o dobro sob vigilância, o sistema de justiça foi descrito como explicitamente seletivo, tendo como alvo principal a população negra e pobre. Dados alarmantes foram compartilhados: em 2024, a polícia brasileira matou quase cinco mil pessoas, sendo 86% delas negras, e em 2025, essa taxa subiu para 90%.

O debate expôs a “retórica da impunidade” que legitima a violência estatal, mesmo quando o Estado age ilegalmente. Foi proposto um enfrentamento direto à legitimidade da punição estatal através de duas vias principais: a linguagem, desconstruindo a epistemologia punitiva do cotidiano, e a produção de conhecimento contra hegemônico, que desmistifique a ideia de que o crime está fora do Estado e evidencie como o próprio Estado comete crimes rotineiramente contra as populações marginalizadas.

Abolicionismo, Organização de Base e a Luta pela Democratização da Terra

A mesa “Abolição e Terra” conectou diretamente a luta abolicionista com as disputas por território e vida. S’bu Zikode, da África do Sul, enfatizou que o poder é construído na solidariedade (“ombro a ombro”) e que as favelas são espaços de produção de conhecimento e de luta. Flávio Almada, de Cabo Verde, trouxe a memória do colonialismo português e da fome como um campo de concentração, defendendo que a abolição é a busca por respostas coletivas para que se possa “chegar à idade madura sem cair no complexo industrial penal”**.

Ruth Wilson Gilmore sintetizou o espírito do encontro ao afirmar que “abolição requer que a gente mude uma única coisa: tudo”. Ela definiu o abolicionismo como um processo prático que emerge das necessidades concretas das lutas, um “ensaio” para um futuro emancipado. Para Gilmore, a abolição é o trabalho de combinar energias, popularizar o debate e reinterpretar o mundo para construir um futuro que, embora inevitável, não está garantido.

A Convergência entre a luta do MST e o Abolicionismo

A participação do MST no encontro revela uma convergência entre a luta pela Reforma Agrária Popular e o pensamento abolicionista. Ambos os movimentos partem de um diagnóstico comum: o Estado capitalista atua como um gerenciador da violência e do abandono organizado. O latifúndio e o agronegócio, ao expulsarem camponeses e concentrarem terras, produzem as “populações excedentes” que o sistema penal depois reprime nas periferias urbanas.

A luta pela terra é, portanto, uma luta contra o abandono organizado no campo. O internacionalismo do MST nasce da compreensão de que o inimigo, o capital global, opera de forma transnacional. Da mesma forma, o abolicionismo penal entende que o complexo industrial-prisional é uma manifestação local de um sistema global de controle.

Ambos os movimentos veem a utopia não como um destino, mas como um método construído no presente. Assim como os abolicionistas criam redes de cuidado para substituir a polícia, o MST constrói assentamentos e cooperativas que prefiguram uma nova sociedade. A luta antirracista e anticolonial é o eixo que une as duas perspectivas, pois tanto a falta de acesso à terra quanto o encarceramento em massa são legados diretos da escravidão e do colonialismo.

O encontro na Cidade do Cabo reafirmou que a luta contra a prisão é inseparável da luta contra o Estado capitalista, racista e colonial. Da mesma forma, a luta pela Reforma Agrária Popular também o é. O MST, ao se somar a este debate, reforça seu compromisso com a reparação histórica e a luta contra todas as formas de opressão, reafirmando a ideia de que não se pode produzir alimentos saudáveis em meio a relações sociais adoecidas.

A solidariedade internacional e a construção de alternativas concretas emergem como o caminho para a abolição de todas as estruturas que mercantilizam e aniquilam a vida.

“Onde a vida é preciosa, a vida é preciosa. Em lugares onde o estado, o governo, os municípios, as organizações de justiça social, as comunidades religiosas e os sindicatos trabalham juntos para elevar a vida humana, os incidentes de crime e punição, incluindo os incidentes de danos interpessoais, são menos propensos a ocorrer.”
Ruth Wilson Gilmore

*Rosa Negra é militante do MST, mãe, poeta e doutoranda no PPGH/USP

*Editado por Fernanda Alcântara

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