O futuro da saúde digital no SUS é problema político e não apenas técnico

A retirada de pauta do substitutivo ao PL 5875 reabre a disputa sobre o futuro da saúde digital no SUS e evidencia que interoperabilidade e dados em saúde são questões políticas — não meramente técnicas

Por Carla Straub, Joyce Souza, Leandro Modolo e Raquel Rachid, em Observatório de Análise Política em Saúde*

A retirada de pauta do último substitutivo ao Projeto de Lei n. 5875/2013 (PL 5875), que trata da consolidação da saúde digital e da interoperabilidade no Sistema Único de Saúde (SUS), junto de seus apensados, abriu uma brecha importante no debate sobre saúde digital no Brasil.

A boa notícia gera uma expectativa por destino semelhante ao da vitória contra a tentativa de cassação do mandato do deputado Glauber Braga. A questão central continua evidente: a saúde digital é um problema político, não meramente técnico.

O histórico recente confirma. Ao longo dos últimos anos foram produzidos alertas, notas e análises sobre os rumos do PL 5875. Especialmente no que toca à interoperabilidade, à falta de proteção de dados sensíveis e à intensificação da influência do setor privado sobre o SUS.

Em suma, é nesses pontos que o substitutivo apresentado em dezembro de 2025 incorre. Há algumas dimensões que precisam ser revistas e nos parecem inegociáveis:

(1) Nunca antes aventada no SUS, a exploração de modelos de negócio e serviços baseados em dados tratados pela Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) passa a ser prevista. Esse cenário abre brecha para a eventual relação da infraestrutura nacional de interoperabilidade em saúde com a agenda de monetização de dados em estudo pela administração pública. Ainda que não se trate da comercialização de dados em formato bruto, trata-se de abertura a outras formas de participação nos circuitos do capital, por exemplo, via assetização.

(2) Não bastasse a ausência de menção ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) como órgão participativo, nota-se a previsão de uma instância de governança da RNDS que passa a possuir uma série de prerrogativas legais, sendo composta pelo setor privado de forma destacada (hospitais e clínicas, operadoras de planos de saúde, laboratórios e centros de diagnóstico, plataformas digitais de saúde e sistemas de informação em saúde). O setor — que é reconhecido constitucionalmente, diriam os mais legalistas — não deve ocupar funções estruturantes das políticas em saúde pública. Essa instância precisa ser suprimida.

(3) A utilização de dados deve ser garantida apenas à pesquisa científica e tecnológica, limitando-a expressamente a órgãos sem fins lucrativos, por meio de um processo de avaliação subordinado ao controle social e a regras de ética em pesquisa – recentemente flexibilizadas pela extinção da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos – Conep (o que traz preocupações adicionais para o caso deste PL).

Essas escolhas não são neutras, nem isoladas. Ainda que não haja espaço para tratar de outros aspectos espinhosos, como os sandbox regulatórios, importa destacar que recentemente a Coalizão Direitos na Rede lançou o estudo “Interoperabilidade, da tecnologia à política”, detalhando como a despolitização quanto ao tema da saúde digital pode abrir flancos para um mercado que atua também na defesa de interesses imperialistas.

Esse cenário se torna ainda mais sensível diante do lançamento da nova Estratégia de Segurança Nacional pelos Estados Unidos e da vocação de empresas como a Palantir (que já ingressou no NHS britânico, possui parceria com o SERPRO e recebeu a relatora do PL 5875 de lei em sua sede).

Esse episódio envolvendo o PL 5875 reforça a necessidade de articulação permanente entre parlamentares, Ministério da Saúde e movimentos sociais.

Mais imediatamente, para o oferecimento de um novo texto. E não se trata de ajuste cosmético.

A ausência de diálogo crítico constante abre terreno para o avanço de agendas entreguistas embaladas no discurso da eficiência. Falar de mudanças de texto em projetos de lei costuma ser desanimador, por representar uma disputa no plano da burocracia e em termos reativos. Mas o enfrentamento ao substitutivo pode marcar um ponto de inflexão.

O Brasil vive hoje um contexto mais amplo de disputa sobre infraestruturas digitais — vide debates sobre o projeto de regulamentação da chamada inteligência artificial ou sobre o Regime Especial de Tributação para Serviços de Datacenter.

É justamente por isso que o campo crítico precisa agir, antes que decisões políticas consolidadas definam um caminho de difícil retorno. A saúde digital pode seguir uma trajetória distinta e mobilizadora, ancorada nas demandas populares e no acesso universal ao sistema de saúde.

A retirada de pauta do substitutivo mostra que essa disputa está aberta e que ainda é possível recolocar o curso político da saúde digital, desde que enfrentemos o problema como ele é: profundamente político. político.

* O Observatório em Análise Política de Saúde é vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Carla Straub, mestra em Educação (UFSC) e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Joyce Souza, doutora em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e pesquisadora do Laboratório de Tecnologias Livres (LabLivre).

Leandro Modolo, doutor em Ciências Sociais (UNESP) e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP).

Raquel Rachid, doutora em Mudança Social e Participação Política (USP) e pesquisadora vinculada à iniciativa Brasil Saúde Amanhã (Fiocruz).

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