A pedagogia da impunidade, por Celso P. de Melo

A pedagogia da impunidade: quando o apaziguamento fortalece o autoritarismo

por Celso Pinto de Melo

“Um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo,
esperando ser o último a ser devorado” – Winston Churchill

A recente aprovação da chamada PEC da Dosimetria pelo Congresso Nacional não pode ser tratada como um simples ajuste técnico do sistema penal. Ela se inscreve numa tradição política conhecida e perigosamente recorrente na história das democracias quando confrontadas por correntes autoritárias: o apaziguamento diante de grupos organizados que não reconhecem limites democráticos, não cumprem acordos e operam deliberadamente para corroer as instituições. A crença de que concessões produzem moderação é uma das ilusões mais persistentes – e mais custosas – da história política moderna.

Em 1938, ao retornar de Munique, o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain anunciou ter garantido “a paz em nosso tempo”. Para evitar o conflito, Reino Unido e França aceitaram que a Alemanha nazista anexasse a região dos Sudetos, então parte da Tchecoslováquia, confiando na promessa de Adolf Hitler de que aquela seria sua última reivindicação territorial. Poucos meses depois, o acordo foi violado, a Tchecoslováquia desmantelada e a Europa caminhava para a guerra. Churchill foi implacável ao diagnosticar o erro estratégico e moral: não se tratava de diplomacia de resultados, mas de rendição moral. Ceder a quem não respeita compromissos não compra estabilidade; apenas amplia o apetite do agressor.

A lógica do apaziguamento já havia operado antes. Em 1924, após liderar o fracassado Putsch da Cervejaria, Hitler foi condenado por alta traição a cinco anos de prisão, mas cumpriu menos de nove meses, beneficiado pela complacência do juiz Georg Neithardt, nacionalista conservador simpático à extrema direita. “Suas ações foram guiadas por puro patriotismo e pelas mais nobres das intenções”, afirmou ao proferir sua sentença indulgente contra o então golpista frustrado. Essa complacência judicial não produziu arrependimento, mas aprendizado. Hitler saiu da prisão mais conhecido, mais organizado e convencido de que o Estado democrático não teria coragem de enfrentá-lo.

No Brasil, o padrão se repetiu. Durante o governo Juscelino Kubitschek, oficiais envolvidos em levantes contra a ordem constitucional – como as revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) – foram anistiados em nome da estabilidade política. Entre eles estava o então major-aviador João Paulo Burnier. Longe de se converter à legalidade democrática, Burnier prosseguiu carreira, acumulou prestígio no regime militar e, anos depois, agora como brigadeiro, surgiria envolvido em planos terroristas internos, como o projeto de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro e atribuir o atentado à esquerda. A anistia não pacificou: credenciou politicamente e normalizou a conspiração.

O mesmo mecanismo operou com a Lei da Anistia de 1979, que protegeu agentes do Estado responsáveis por crimes graves. O coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi de São Paulo, jamais respondeu criminalmente por tortura, homicídio ou desaparecimento forçado, blindado pela anistia ampla concedida aos perpetradores do regime. Décadas depois, viria a ser reconhecido civilmente como torturador, sem consequências penais, e convertido em símbolo e herói da extrema direita contemporânea. A anistia caolha não apagou os crimes; permitiu sua reciclagem política.

Essas concessões produzem um efeito profundo e cumulativo: a pedagogia da impunidade, hoje operada com método pelo próprio Congresso Nacional. Quando golpes são tentados e não punidos, quando ataques às instituições são relativizados em nome da “governabilidade”, quando chantagens políticas resultam em emendas constitucionais aprovadas às pressas, madrugada adentro, o Parlamento deixa de ser anteparo democrático e passa a funcionar como instância de homologação da transgressão. A ruptura institucional deixa de ser exceção e converte-se em procedimento; a radicalização, em estratégia premiada. É nesse ponto que se instala o risco maior identificado por Hannah Arendt: não a mentira isolada, mas o instante em que ela deixa de escandalizar – quando a realidade se dissolve, o senso de limite desaparece e o autoritarismo passa a operar como possibilidade banal, aceita e administrável no cotidiano político.

No Brasil atual, essa lógica se expressa de forma cristalina na prática parlamentar. Hugo Motta, deputado federal eleito pela Paraíba com cerca de 158 mil votos, construiu sua ascensão sob a tutela política do Centrão. Herdeiro direto da escola de Eduardo Cunha, chegou à presidência da Câmara não por liderança programática, mas pela capacidade de articular uma ampla coalizão fisiológica sustentada por emendas, cargos e controle da agenda legislativa. Davi Alcolumbre, senador reeleito pelo Amapá com cerca de 196 mil votos, trilhou caminho semelhante: tornou-se presidente do Senado como operador hábil de acordos transversais, apoiado por redes que perpassam partidos e governos, sempre à margem de compromissos públicos duradouros. Ambos se notabilizaram reiteradamente por violar acordos firmados à luz do dia e conduzir decisões legislativas de alto impacto institucional a toque de caixa, madrugada adentro, enquanto a vigilância social adormece. Não se trata de exceção, mas de método. A mensagem enviada à extrema direita é inequívoca: pressionem, ameacem, tensionem – o sistema cede. Como resumiu Delfim Netto, acordo de cavalheiros só funciona quando há cavalheiros dos dois lados. O dado mais grave é que esse apaziguamento parlamentar se dá em aberto confronto com a sociedade: cerca de 60% da opinião pública brasileira rejeita qualquer forma de anistia aos golpistas, segundo a média dos levantamentos recentes.

A história brasileira, no entanto, ensina também outra lição – e ela é decisiva. Nenhuma conquista democrática relevante no Brasil nasceu do apaziguamento; todas resultaram de mobilização popular persistente. Em setembro de 2025, foi a pressão das ruas que forçou o Congresso a recuar da PEC da Blindagem, demonstrando que a extrema direita não é invencível quando confrontada por resistência social organizada, legítima e pacífica. O precedente mais eloquente permanece sendo a campanha das Diretas Já. Mesmo derrotada no voto parlamentar, ela corroeu a legitimidade do regime militar, fraturou sua base de sustentação e acelerou seu colapso político e moral. A democracia brasileira nunca avançou por concessões graciosas do poder; avançou quando a sociedade impôs limites claros, visíveis e inegociáveis.

Como escreveu Bertolt Brecht, a cadela do fascismo está sempre no cio. Ela não se domestica com gestos de boa vontade. Avança quando fareja medo, hesitação e oportunismo político míope. A PEC da Dosimetria, as conversas sobre anistia e os acordos rompidos não são fatos isolados, mas sintomas de uma escolha perigosa: tentar preservar uma estabilidade aparente sacrificando a democracia real. A história ensina – sempre ensinou – que esse caminho conduz ao desastre.

Diante disso, cabe ao Presidente da República vetar integralmente a PEC da Dosimetria, excrescência jurídica que funciona como anistia disfarçada a golpistas e um sinal verde à reincidência autoritária. Chega de alimentar crocodilos institucionais.

E cabe à sociedade fazer novamente o que sempre fez nos momentos decisivos de sua história: se mobilizar, ocupar as ruas, de forma legítima, pacífica e organizada, para afirmar que a democracia não é moeda de troca, não se negocia nas madrugadas do Congresso e não será entregue, mais uma vez, aos que trabalham para destruí-la. “Sem Anistia” não é apenas uma palavra de ordem – é a expressão clara e majoritária da vontade popular.


Celso Pinto de Melo – Professor Titular Aposentado da UFPE, Pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências.

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