A incoerência e a perda de credibilidade da Europa, por Luciano Fazio

A incoerência e a perda de credibilidade da Europa

por Luciano Fazio

A atitude da Europa em relação à guerra na Ucrânia, de um lado, e às agressões sofridas pela Venezuela por parte dos Estados Unidos e pelo povo palestino por parte de Israel, de outro, revela uma profunda incoerência política, jurídica e moral que mina a credibilidade do discurso europeu fundado no direito internacional e nos direitos humanos.

No conflito ucraniano, a União Europeia assumiu uma posição clara, coesa e assertiva: condenação da agressão russa, sanções econômicas de grande alcance, apoio militar direto a Kiev e uma narrativa pública centrada na defesa da soberania nacional, da integridade territorial e da ordem internacional baseada em regras. Nesse contexto, a Europa se apresenta como paladina do direito internacional, da legalidade e da proteção dos civis.

No entanto, essa firmeza parece se dissolver quando os responsáveis por violações semelhantes são aliados estratégicos do Ocidente.

No caso da Venezuela, em grande medida a Europa tolera ou legitima uma estratégia estadunidense composta por sanções econômicas, bloqueios financeiros, reconhecimentos unilaterais de governos paralelos e atos explícitos de intervenção militar (como se vê no bloqueio naval das últimas semanas), baseada em acusações infundadas de apoio ao narcotráfico. Tais medidas de Washington configuram uma ingerência inaceitável em um Estado soberano e têm um impacto direto e documentado sobre a população civil venezuelana. Por sua vez, a União Europeia e seus Estados-membros silenciam e evitam cuidadosamente adotar sanções (ou outras medidas dissuasórias) contra Washington. O princípio da não ingerência, tão central no discurso sobre a Ucrânia, é aqui relativizado ou silenciado.

Ainda mais evidente é a disparidade no caso da Palestina. Diante das reiteradas violações das resoluções das Nações Unidas por parte de Tel Aviv ao longo das últimas décadas e, mais recentemente, das operações militares israelenses em curso, da ocupação prolongada dos territórios palestinos, dos assentamentos ilegais de colonos israelenses em terras palestinas, do bloqueio de Gaza e das violações sistemáticas dos direitos humanos denunciadas pelas missões da ONU e por outras organizações internacionais, a Europa mantém uma posição ambígua, prudente até a cumplicidade. As raras condenações são frequentemente genéricas, formuladas em termos de “preocupação”, enquanto o direito de Israel à “autodefesa” é reiterado mesmo quando as ações militares atingem de forma desproporcional civis, infraestruturas essenciais e trabalhadores humanitários.

Essa dupla moral enfraquece radicalmente a pretensão europeia de representar uma ordem internacional fundada em normas universais. O direito internacional não pode ser aplicado de forma seletiva: ou vale para todos, ou perde sua função de limite à “lei do mais forte”. Quando a Europa condena o uso da força apenas se praticado por adversários geopolíticos, mas fecha um olho — ou ambos — diante dos abusos de seus aliados, transforma valores em instrumentos retóricos, e não em princípios.

Na segunda metade do século XX, os Estados europeus puseram formalmente fim ao seu domínio colonial. Ainda assim, na prática, admitem até hoje que os países do Sul global, incluindo o Oriente Médio, possam ser agredidos pelo bloco ocidental e por seus aliados sem consequências políticas proporcionais.

Não causa surpresa, portanto, que as populações e os governos do Sul global não considerem a Europa um ator credível na construção da paz mundial, mas antes como parte integrante (e subalterna) de um bloco de países mais atento aos equilíbrios de poder do que à coerência ética.

Em última análise, essa incoerência não enfraquece apenas o direito internacional, mas também a própria ideia de Europa como projeto político de paz, justiça e universalidade dos direitos humanos. Juntamente com outros fenômenos, ela representa mais um elemento que atesta uma decadência da qual os próprios europeus têm plena consciência.

Luciano Fazio – Matemático pela Università degli Studi de Milão e pós-graduado em Previdência Social e Gestão de Fundos de Pensão pela FGV. Trabalha com consultoria e formação nas áreas de economia e previdência e é consultor externo do Dieese para assuntos previdenciários. Autor dos livros “O que é Previdência Social”, Loyola, 2016, e “O que é Previdência do Servidor Público”, Loyola 2020.

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