Rosa von Praunheim e o conflito que não se deixa enterrar
por Eliseu Raphael Venturi
A morte de Rosa von Praunheim (Holger Bernhard Bruno Mischwitzky, 25/11/1942-17/12/2025) não é apenas o desaparecimento de um cineasta ou de um ativista histórico; ela marca o fechamento de uma forma específica, e hoje rara, de articulação entre arte, política e dissidência sexual.
Rosa pertence a uma geração que não compreendeu a visibilidade como conquista pacífica, nem a liberdade como estado final. Sua obra nasce do conflito e nele permanece. Mesmo morto, Rosa não se acomoda à função memorial que costuma neutralizar figuras incômodas.
Desde o gesto inaugural de Não é o homossexual que é perverso, mas a situação em que ele vive (1971), Rosa inscreveu a homossexualidade no espaço público não como identidade a ser tolerada, mas como problema político a ser enfrentado. O filme não apenas denunciava a homofobia estrutural da sociedade alemã do pós-guerra; ele acusava, frontalmente, a passividade como forma de adaptação subjetiva à violência.
Praunheim expôs aquilo que muitos preferiam manter como estratégia silenciosa de sobrevivência: a troca entre reconhecimento social e despolitização do desejo.
Essa lógica atravessa toda a sua trajetória. O nome Rosa von Praunheim — combinação do triângulo rosa dos campos de concentração com o bairro onde cresceu — não é pseudônimo estético, mas inscrição simbólica. Ele recusa o apagamento histórico da violência nazista e, ao mesmo tempo, impede que a homossexualidade seja reconfigurada como identidade limpa, reconciliada, sem resto.
Rosa nunca permitiu que a história da libertação sexual fosse narrada como progresso linear; sua obra insiste na permanência do conflito sob novas formas de normalização.
Nos anos da crise da AIDS, essa posição se torna ainda mais radical. Ao defender o outing de figuras públicas, Rosa desloca o debate do plano moral para o plano estrutural. Sua tese era simples e brutal: enquanto a homossexualidade produzir exclusão material — perda de trabalho, moradia, direitos e vidas —, ela não pode ser tratada como questão estritamente privada. Essa posição lhe rendeu rejeição inclusive dentro da comunidade gay, revelando o ponto central de sua crítica: a dissidência também produz seus próprios mecanismos de autoproteção conservadora.
Esteticamente, Rosa recusou o acabamento que pacifica. Seus filmes transitam entre o kitsch, o documental e o excesso, muitas vezes assumindo um aspecto deliberadamente precário. Não se trata de limitação técnica, mas de posição ética.
O cinema de Rosa não busca legitimidade institucional nem sedução estética; ele opera como corpo estranho, como ruído dentro da cultura. Sua inserção no Novo Cinema Alemão nunca foi harmoniosa: Rosa ocupa ali o lugar do excesso que impede o fechamento narrativo da identidade nacional e da memória pós-guerra.
Mais do que lutar por liberdade sexual, Rosa insistiu na dimensão política da solidariedade. Seu cinema denuncia a transformação da liberação dos corpos em consumo, da visibilidade em mercado, da identidade em estilo de vida. A pergunta que atravessa sua obra permanece incômoda: o que resta da política quando a dissidência se torna administrável? O que sobra do desejo quando ele é plenamente integrado à norma?
A morte de Rosa von Praunheim encerra uma trajetória, mas não resolve essa pergunta. Seu legado não é o de um ícone conciliador, mas o de uma fissura permanente na cultura LGBT e na própria ideia de progresso liberal. Rosa não deixou modelos; deixou o olhar lançado sobre feridas abertas. E talvez seja precisamente isso que o torne ainda necessário: lembrar que nenhuma liberdade se sustenta sem conflito, e que toda política que perde a capacidade de incomodar começa, lentamente, a morrer.
Permanência e relevância atual
A relevância da obra de Rosa von Praunheim na cultura atual reside menos em sua condição histórica de pioneiro e mais em sua capacidade de funcionar como instrumento crítico diante dos modos contemporâneos de normalização da dissidência.
Em um contexto marcado pela institucionalização das pautas LGBT, pela captura mercadológica da diversidade e pela conversão da visibilidade em capital simbólico, a obra de Rosa opera como antídoto incômodo contra a ideia de que reconhecimento equivale a emancipação.
Sua crítica à passividade política e à assimilação pequeno-burguesa permanece atual porque antecipa um fenômeno hoje amplificado: a transformação da identidade em estilo de vida e da luta em performance. Rosa não reivindicava apenas direitos formais, mas insistia na dimensão coletiva, conflitiva e solidária da política, lembrando que a integração social pode coexistir com novas formas de exclusão, precarização e violência simbólica. Sua obra ajuda a recolocar a pergunta sobre o que se perde quando a dissidência deixa de tensionar o comum.
No plano estético, a recusa do acabamento, do polimento narrativo e da respeitabilidade cultural ganha novo sentido diante de uma produção audiovisual cada vez mais orientada por métricas, plataformas e algoritmos. A precariedade deliberada de Rosa — entre o kitsch, o excesso e o documental — confronta diretamente a lógica contemporânea da aceitabilidade, lembrando que a arte política não nasce da adequação, mas do atrito. Sua obra oferece, assim, uma pedagogia do desconforto, hoje amplamente neutralizada até pelos entusiastas do grotesco normalizado.
Há, ainda, uma relevância ética central: a recusa de separar radicalmente o privado do político em contextos de violência estrutural. O debate sobre outing, responsabilidade pública e visibilidade forçada reaparece, sob novas formas, nas discussões atuais sobre exposição digital, cancelamento, silêncio cúmplice e posição pública de figuras influentes. Rosa fornece um referencial duro, mas consistente, para pensar esses impasses sem moralização fácil.
Por fim, a obra de Rosa von Praunheim permanece relevante porque resiste à narrativa de progresso contínuo. Ele lembra que direitos podem ser revertidos, que a normalização não elimina o ódio e que a política da diferença exige vigilância permanente.
Em tempos de recrudescimento autoritário, moralização dos costumes e instrumentalização da cultura, sua obra não oferece consolo, mas lucidez crítica — e é justamente essa ausência de conforto que a torna, ainda hoje, necessária.
[Referência da foto: https://www.tagesspiegel.de/kultur/im-alter-von-83-jahren-filmemacher-rosa-von-praunheim-ist-tot-15060241.html ].
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
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