Um acordo com Deus para trocar de lugar com seu amor e conseguir, assim, sentir o que ele sente e atingir uma melhor compreensão do relacionamento entre homem e mulher. Este é o tema da canção Running Up That Hill, da cantora e compositora inglesa Kate Bush, que foi catapultada ao topo das paradas em 2022, ao ser usada na trilha sonora de Stranger Things, da Netflix.
Agora, nos episódios finais da série – que começaram a ser liberados na plataforma em 26 de novembro – a canção voltou com um importante papel narrativo. Ela serve de ajuda para que a personagem Max (Sadie Sink) se livre do vilão, Vecna (Jamie Campbell Bower). E, mais uma vez, Kate Bush explodiu com a canção de 1985.
Em 2022, Running Up That Hill ficou entre as músicas mais ouvidas nas plataformas de streaming em oito países. Na Inglaterra, Kate bateu o recorde de cantora mais velha a chegar ao topo das paradas, aos 63 anos, tirando Cher do pódio. Conquistou ainda a terceira posição no ranking norte-americano da Billboard, seduzindo milhares de fãs entre a Geração Z.
Assim que surgiu em cenas épicas do seriado, a música teve um salto de 153% na audiência. Em 2023, a canção atingiu o patamar de 1 bilhão de reproduções e, agora, com seu reaparecimento nos momentos decisivos de Stranger Things, os streams tinham superado, até a semana passada, a marca de 1,5 bilhão. No TikTok, foram, de 2022 até aqui, 3,2 milhões de vídeos publicados.
O hit, que parecia ter atingido seu pico em 2022, mas ressurgiu com força este mês, diz muito sobre um fenômeno cultural: a nostalgia da Geração Z. Recentemente, os criadores da série, Matt e Ross Duffer, afirmaram que não esperavam o impacto tão profundo da canção, principalmente entre a geração formada por pessoas nascidas entre meados dos anos 1990 e 2010.
Uma possível explicação para o sucesso está num trabalho realizado pelo psicólogo estadunidense Clay Routledge. No livro Past Forward: How Nostalgia Can Help You Live a More Meaningful Life (O Futuro do Passado: Como a Nostalgia Pode Ajudar Você a Ter Uma Vida Melhor, em tradução livre, editado em 2023 pela MacMillan), ele confirma o forte interesse da Geração Z em resgatar um passado que não viveu.
A partir de uma pesquisa realizada com 2 mil norte-americanos, Routledge descobriu que 68% dos integrantes da Geração Z sentem nostalgia de um tempo anterior ao seu nascimento e 73% são atraídos por mídias, hobbies e estilos desses períodos.
Isto explicaria, em parte, o frisson em torno da série Stranger Things, ambientada nos anos 1980; o ressurgimento do vinil como mídia musical; e mesmo do sucesso de Running Up That Hill. Essa busca por uma “vivência nostálgica” tem contribuído para impulsionar outras canções de Kate Bush.
O gosto pela vivência nostálgica, comum entre os nascidos de meados dos anos 1990 a 2010, tem impulsionado outras canções da britânica
Babooshka, de 1980, tem 221,4 mil publicações no TikTok e 213 mil streams no Spotify. A música também tem como tema o relacionamento de um casal: a narradora escreve cartas para o marido, assinando como “Babooshka” para testar a sua fidelidade.
Army Dreamers, outra composição de 1980, sobre uma mãe enlutada pela perda do filho na guerra, saltou de 80 mil para mais de 1,1 milhão de streams depois do início da guerra da Ucrânia. A canção, geralmente, aparece acompanhada de vídeos que mostram os horrores dos conflitos recentes. Só no Spotify foram 283 milhões de streams.
Se o grande público está conhecendo o trabalho de Kate Bush hoje, os artistas a acompanham há muito tempo. Em uma rara série de 22 shows realizados em Londres, em 2014, ela foi assistida por uma plateia que incluía Björk, Paul McCartney, Elton John, David Gilmour, Grace Jones, Annie Lennox, Peter Gabriel, Jimmy Page e Johnny Depp. Os cobiçados ingressos se esgotaram em minutos.
Uma das caraterísticas mais marcantes de sua obra é a aproximação com temas exóticos. Seu primeiro single trazia a canção Wuthering Heights, baseada em uma adaptação cinematográfica do livro O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë.
Kate começou a compor no início da adolescência. De forma caseira, gravava suas músicas em fitas demo. Uma delas chegou às mãos de David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd, que a apresentou à gravadora EMI quando ela tinha apenas 15 anos. Lançada aos 18 anos, foi direto para o topo das paradas do Reino Unido com Wuthering Heights (1978) e sagrou-se a primeira mulher compositora da história a vender 1 milhão de cópias de um disco de estreia.
A canção ficou tão enraizada na cultura pop que, todo dia 30 de julho, aniversário de Kate, milhares de pessoas se reúnem em várias partes do mundo para repetir a coreografia do vídeo de Wuthering Heights. Os fãs se vestem com o figurino original: um vestido vermelho.
Nascida em 1958, filha de um médico e de uma enfermeira, Kate cresceu cercada de música e arte. A literatura, desde cedo, foi para ela uma grande inspiração. Só para ficar em alguns exemplos, a música The Sensual World é baseada em Ulisses, de James Joyce; Get Out Of My House em O Iluminado, de Stephen King; Jig of Life na Odisseia, de Homero; e Blow Away em Otello, de Shakespeare.
Se a cantora contribuiu, ao longo de sua trajetória, para que obras literárias fossem descobertas, hoje uma série da Netflix contribui para que uma nova geração se encontre com sua música. Até 31 de dezembro, quando o aguardadíssimo último episódio desta temporada de Stranger Things será disponibilizado na Netflix, ainda há muito stream por vir. •
Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Eterno revival’