A prisão do desembargador Macário Ramos Júdice Neto, na terça-feira 16, é mais uma pá de cal sobre o plano da direita bolsonarista de lançar um candidato competitivo ao governo do Rio de Janeiro no ano que vem. O magistrado é apontado como a primeira autoridade a participar do “esforço” para tentar evitar a prisão, ocorrida em setembro, do então deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva, conhecido como TH Joias, acusado de associação criminosa com o Comando Vermelho.
De acordo com a Polícia Federal, Júdice Neto, que atua no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), alertou o então presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Rodrigo Bacellar, do União Brasil, sobre a ordem de prisão contra TH Joias, que o próprio desembargador acabara de assinar. Em seguida, Bacellar passou a orientar TH sobre como descartar eventuais provas e “se preparar” para a iminente chegada dos policiais. Preso pelo vazamento de informações sigilosas da operação, o informante permaneceu sete dias na carceragem da Superintendência da PF no Rio de Janeiro. Foi libertado por decisão de seus colegas parlamentares e, posteriormente, pediu licença do cargo.
Ocorridas no âmbito do julgamento da ADPF das Favelas pelo Supremo Tribunal Federal, as três prisões colocam a direita fluminense duplamente em desvantagem para 2026. De um lado, as “ligações perigosas” do alto escalão do governo corroem a base do discurso “linha-dura” na segurança pública que voltou a ganhar apoio popular após a ação policial que resultou em 122 mortos nos complexos da Penha e do Alemão. De outro, o chão repentinamente aberto sob os pés de Bacellar deixa os partidos que apoiam o governador Cláudio Castro, do PL, sem candidato para encarar competitivamente nas urnas o prefeito do Rio, Eduardo Paes, do PSD, que terá o apoio da esquerda e do presidente Lula.
Desembargador do TRF2 ajudou a vazar operação contra TH Joias, acusado de associação com o Comando Vermelho
Bacellar teve sua convocação confirmada pela CPI do Crime Organizado instalada no Senado. “Temos a missão de fazer uma radiografia da infiltração do crime organizado nos Poderes, e é impossível fazer isso sem olhar para o Rio”, diz o relator da CPI, senador Alessandro Vieira, do MDB. Segundo fontes do governo estadual, é grande a apreensão quanto à postura a ser adotada pelo ex-presidente da Alerj durante seu depoimento em Brasília, uma vez que Bacellar, outrora considerado “siamês” de Castro, com quem na prática dividia o governo por ter sido o principal fiador da consolidação do aliado no Palácio Guanabara após o impeachment de Wilson Witzel em 2021, tornou-se este ano desafeto do govenador.
A prisão e o afastamento da Alerj só fizeram aumentar o inferno astral de Bacellar, que no meio do ano gozava da posição de ungido como candidato da direita ao governo pelo próprio Castro, com apoio da família Bolsonaro, mas viu tudo ruir a partir das crescentes divergências políticas com o governador. Castro, por sua vez, também está na mira da PF, que investiga um despacho do Executivo estadual, realizado no mesmo dia em que TH Joias foi preso, determinando a exoneração do então secretário de Esportes, Rafael Picciani, que voltou a ocupar sua cadeira de deputado na Alerj. A medida, segundo as investigações, teve o intuito de fazer com que TH voltasse a ser suplente e, com isso, não fosse necessária a votação dos deputados pelo relaxamento ou manutenção de sua prisão.
Preso e afastado do comando da Alerj por decisão do ministro Alexandre de Moraes, Bacellar foi encarcerado na sede da PF após ter sido atraído com o convite para uma reunião. No momento da prisão, o parlamentar tinha 90 mil reais em espécie no porta-malas do carro. “Vários elementos reforçam a periculosidade da organização criminosa investigada e sua profunda infiltração no Poder Público fluminense”, afirmou Moraes em seu despacho. Entre os antigos comandados da Alerj, Bacellar teve melhor sorte. Por 4 votos a 3, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou resolução para relaxar sua prisão, decisão confirmada horas depois pelo plenário da casa por 42 votos a 21. Os deputados também pretendiam adiar o afastamento de Bacellar do mandato, mas a decisão foi reiterada pelo STF, que também determinou o uso de tornozeleira eletrônica.
Lances. TH Joias é acusado de negociar armas, drogas e drones para o CV. A aventura presidencial de Flávio Bolsonaro facilita os planos da esquerda de eleger ao menos um senador pelo estado – Imagem: Andressa Anholete/Agência Senado e Redes Socias
Em nota oficial, Castro afirma que o Executivo “acompanha os fatos com a devida atenção” e lembra que é preciso garantir ao presidente do Legislativo estadual “o devido processo legal”. À imprensa, o governador disse “torcer para que nenhum agente público se envolva com o Comando Vermelho”. Se confirmada essa ligação, acrescenta, “o agente tem de ser punido exemplarmente, esteja em que posto estiver”. O tom do discurso marca o novo momento do governador, que, impulsionado pela melhora em sua avaliação após a ação policial na Penha e no Alemão, saiu de uma posição em que até já admitia não ser candidato a nada em 2026 para um renovado protagonismo político que o fortalece como candidato ao Senado.
Esse era o plano inicial, em uma operação que incluiu a nomeação do vice-governador, Thiago Pampolha, do MDB, ao Tribunal de Contas do Estado como forma de fazer com que Bacellar se tornasse governador quando Castro se desincompatibilizasse do cargo no ano que vem. No entanto, as divergências entre os antigos aliados foi crescendo e culminou em julho, quando, durante uma licença de Castro, Bacellar aproveitou o exercício do governo para tomar medidas políticas por conta própria, entre elas a demissão do então secretário de Transportes, Washington Reis, do MDB, aliado de primeira hora do bolsonarismo no Rio. “Houve precipitação no lançamento do nome do Bacellar para governador e isso só será decidido em 2026”, disse o senador Flávio Bolsonaro, do PL, logo após o imbróglio, dando a senha do que seria o início do fim para o ex-presidente da Alerj.
“Com a queda do projeto que colocaria Bacellar como governador e candidato à reeleição, o campo mais ligado à direita conservadora e bolsonarista no Rio entra em um processo de recomposição difícil e fragmentado”, diz a cientista política Mayra Goulart, da UFRJ. Ela ressalta que “a conjuntura mudou drasticamente” desde a saída de Pampolha. “A viabilidade institucional e eleitoral de Bacellar foi comprometida, gerando um vácuo de liderança. A maior chance da direita agora passa pelo Senado, já que Flávio e Castro aparecem à frente nos cenários de intenção de voto”, explica.
Castro voltou a sonhar com vaga no Senado após a matança nos complexos da Penha e do Alemão, aplaudida por parcela expressiva da população carioca
Na disputa pelo Palácio Guanabara, Goulart avalia que a direita terá dificuldade em articular uma frente capaz de derrotar o atual prefeito do Rio. “A ausência de um candidato de peso da direita tende a reforçar o favoritismo de Paes e a aumentar sua penetração entre eleitores desse campo político, coroando um esforço que o prefeito realiza há meses”, diz. Além disso, segundo Goulart, a falta de um candidato presidencial definido reduz a capacidade do bolsonarismo de agrupar a direita de forma hegemônica no estado.
Nesse xadrez eleitoral, até a ensaiada candidatura de Flávio à Presidência da República pode atrapalhar a direita nas eleições estaduais, como observa o deputado estadual Carlos Minc, do PSB. “É fundamental que a esquerda consiga eleger pelo menos um senador. Se Flávio realmente desistir do Senado e se lançar na corrida presidencial, isso melhora as nossas chances”, avalia. Em relação ao governo estadual, Minc diz que a direita “está bem enrascada” e se vê cada vez mais enfraquecida no estado. “Perderam a bandeira do combate à corrupção porque votaram a favor do PL da Blindagem, que, no fundo, era para proteger o crime de corrupção dos colarinhos brancos. Sobrou a segurança, mas agora a direita defende um presidente da Alerj que acobertou o Comando Vermelho.”
Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Luiz Eduardo Motta avalia que a força do prefeito do Rio se dá também pela capacidade de atrair o eleitorado de direita, sobretudo no caso de ausência de um nome competitivo desse campo. “Paes não se apresenta como um candidato de esquerda, mas como o candidato de uma frente ampla que é capaz de absorver elementos da direita que venham apoiar a sua candidatura. Isso pode acontecer, inclusive, com aqueles que querem manter seu espaço de poder dentro da administração pública. Paes poderá atrair o eleitorado mais conservador, mesclado com o que apoia o governo Lula.”
Caminho livre. Eduardo Paes é franco favorito na disputa pelo governo fluminense – Imagem: SMCG/Prefeitura do Rio de Janeiro
Para Motta, é prematuro falar, na atual conjuntura, em derrocada do bolsonarismo no Rio. “Sem uma liderança, estará em estado catatônico, mas isso não significa que o movimento da extrema-direita será superado. Com o tempo, poderemos afirmar se haverá ou não a emergência de uma nova liderança nesse campo. Mas, para candidaturas majoritárias, é inegável a dificuldade no ano que vem.” O professor diz que resta saber as opções de candidatura que a extrema-direita fluminense vai materializar nas próximas eleições: “Ainda podem crescer para deputado estadual e federal, graças a práticas clientelistas e à influência de igrejas, das milícias e do narcotráfico”.
Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima afirma a urgência da continuidade das investigações sobre a infiltração do Poder Público pelo crime organizado e ressalta a importância da participação da União. “Não se trata de tentar ocupar o espaço das polícias estaduais, mas de articular, integrar e coordenar as atividades de investigação. Isso se faz com Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal Federal, para que dê ênfase às investigações contra o PCC e o CV, que já estão nas 27 unidades da federação.” Essa infiltração, acrescenta Lima, é notória no Rio: “Houve as prisões do desembargador e do presidente da Assembleia e essa captura da política institucional pelo crime organizado. O governo federal tem como fazer essa atuação, esse é o ponto de partida”. •
Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Relações perigosas’