Esforço contínuo

De acordo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o Brasil deve registrar cerca de 700 mil novos casos da doença em 2025, número semelhante ao dos anos anteriores. Embora muitos diagnósticos estejam ligados a fatores de risco modificáveis, como tabagismo, má alimentação e sedentarismo, a prevenção ainda avança lentamente. Para discutir a atuação da atenção primária, estratégias preventivas e a ampliação do acesso ao diagnóstico e ao tratamento, a Fiocruz promoveu no Rio de Janeiro o seminário internacional “Controle do Câncer no Século XXI: Desafios Globais e Soluções Locais”, que reuniu o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, o ex-ministro José Gomes Temporão e o diretor do Inca, Roberto Gil. Entre os participantes, Elisabete Weiderpass, diretora da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer da OMS (Iarc), conversou com o repórter Maurício Thuswohl sobre o tema.

CartaCapital: Ainda estamos longe de universalizar uma abordagem preventiva que valorize a atenção primária no combate ao câncer?
Elisabete Weiderpass: A prevenção do câncer é um desafio global. Todos os países enfrentam dificuldades para reduzir fatores de risco modificáveis e fortalecer políticas que promovam ambientes mais saudáveis. Alimentação inadequada, consumo de álcool e tabaco, excesso de peso e sedentarismo avançam em todo o mundo, e enfrentá-los requer ações integradas, intersetoriais e sustentadas ao longo do tempo. O Código Latino-Americano e Caribenho Contra o Câncer é uma grande oportunidade para a região, pois converte evidências científicas em recomendações práticas e acessíveis para prevenção, detecção precoce e tratamento. Uma parcela expressiva dos casos pode ser evitada quando escolhas individuais são apoiadas por políticas consistentes e por condições que favoreçam hábitos mais saudáveis.

CC: É preciso estar mais perto da população?
EW: A atenção primária é essencial na prevenção do câncer. É nela que a população tem o contato mais direto com orientações sobre hábitos de vida, vacinação, detecção precoce e encaminhamentos oportunos, de forma contínua. No Brasil, o SUS oferece a estrutura necessária para que essas ações cheguem de maneira equitativa a todas as regiões.

CC: O País tem avançado?
EW: O Brasil tem progredido em áreas centrais da prevenção. A vacinação contra o HPV é um exemplo: desde que entrou no Programa Nacional de Imunizações, o acesso para meninas e meninos expandiu-se, e as campanhas nacionais ampliaram ainda mais essa cobertura. Ao combinar isso com a mudança para o rastreamento do HPV, o País avança de forma consistente rumo à eliminação dessa doença como problema de saúde pública.

CC: Onde falta avançar?
EW: O Brasil tem plenas condições de fazer da atenção primária o pilar da prevenção e do controle do câncer, graças à capilaridade do SUS. Seguir nessa direção exige esforços contínuos para fortalecer a coordenação entre os níveis de governo, garantir estabilidade de investimentos e ampliar a cooperação técnica dentro e fora do País. Esses passos são essenciais para incorporar as ações de prevenção à rotina da atenção primária.

CC: A falta de políticas públicas pelos governos nacionais dificulta uma abordagem global de combate à doença?
EW: Políticas nacionais de prevenção e controle do câncer são fundamentais para orientar ações consistentes, reduzir desigualdades e articular os diferentes níveis de cuidado – uma necessidade comum a muitos países. No entanto, vários deles têm dificuldade em transformar diretrizes em prática, devido à complexidade dos fatores de risco, às desigualdades regionais e à necessidade de coordenação entre diversos setores além da saúde.

“A desigualdade no acesso às terapias mais inovadoras é um desafio global”, avalia Elisabete Weiderpass

CC: O Brasil tem uma Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer, mas muitas metas não foram atingidas.
EW: A política brasileira define diretrizes para vigilância, prevenção, diagnóstico e cuidado. Transformá-las em ações sustentadas depende da continuidade de investimentos, da integração entre políticas públicas e de mecanismos sólidos de monitoramento. Um foco central é a promoção de ambientes mais saudáveis. O País conquistou avanços históricos no controle do tabaco e fortaleceu a vigilância dos fatores de risco, mas, como em outros países, é preciso assegurar a continuidade das políticas de regulação e promoção da saúde.

CC: O que deu certo?
EW: O Brasil avançou com ações tributárias sobre tabaco, álcool e bebidas açucaradas. Medidas complementares, como reduzir ultraprocessados na alimentação escolar e estabelecer normas de proteção de ambientes públicos, mostram que a promoção da saúde depende de políticas fiscais, regulatórias e educativas articuladas. O SUS, com sua capilaridade e caráter universal, garante que essas ações alcancem a população de forma equitativa. A consolidação de sistemas de informação, o fortalecimento dos registros de câncer e a integração entre vigilância epidemiológica e gestão do cuidado proporcionam uma resposta mais estruturada e orientada por evidências, transformando diretrizes nacionais em avanços concretos.

CC: Com as novas tecnologias, o tratamento do câncer tornou-se uma “coisa de gente rica”?
EW: A desigualdade no acesso às terapias mais inovadoras é um desafio global. Tecnologias como terapias-alvo, imunoterapias e abordagens genéticas são avanços importantes, mas seus ­custos ainda são elevados, exigindo avaliação cuidadosa para incorporação nos sistemas de saúde. Há consenso de que decisões sobre tratamentos oncológicos devem basear-se em evidências e análises de custo-efetividade, garantindo inovação de forma sustentável e equitativa. Ao mesmo tempo, grande parte da redução da mortalidade nas últimas décadas se deve aos pilares tradicionais: cirurgia de qualidade, radioterapia oportuna e quimioterapia essencial. Essa tríade continua sendo fundamental, além da prevenção e do diagnóstico precoce.

CC: Os pacientes têm acesso a terapias eficazes no Brasil?
EW: O SUS garante acesso universal a tratamentos eficazes e de qualidade, inclusive para a população mais pobre. É um diferencial em comparação a muitos países de renda semelhante. Outro ponto relevante é o crescimento da capacidade instalada para o cuidado oncológico. O Brasil tem investido na ampliação do acesso à radioterapia, na organização de redes de cuidado e na qualificação dos serviços especializados. Esses avanços fortalecem o acesso e contribuem para reduzir desigualdades regionais. •

Publicado na edição n° 1393 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Esforço contínuo’

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