A violência armada no Brasil impôs um custo de R$ 556 milhões ao Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos dez anos, apenas com internações hospitalares de vítimas de ferimentos provocados por armas de fogo. Os dados evidenciam falhas nas políticas de prevenção e reforçam a necessidade de tratar o problema como uma questão de saúde pública.
As informações constam da terceira edição de um levantamento do Instituto Sou da Paz, baseado em registros do Sistema de Informações Hospitalares (SIH), do Ministério da Saúde, com dados consolidados até 2024. No período analisado, o gasto médio anual foi de R$ 56,6 milhões.
Somente em 2024, 15,8 mil pessoas foram internadas em hospitais públicos após serem baleadas, gerando uma despesa de R$ 42,3 milhões. O custo médio por internação chegou a R$ 2.680, valor 159% superior ao gasto federal médio per capita em saúde no mesmo ano, estimado em R$ 1.033.
Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, os números mostram que a violência armada extrapola a esfera da segurança pública, conclusão já reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e instituições acadêmicas internacionais.
O estudo aponta que as internações decorrentes de ferimentos por arma de fogo são significativamente mais onerosas do que outras formas de agressão. Em média, esses atendimentos custam cerca de 80% mais do que internações por violência física ou por objetos cortantes, também frequentes no país.
Com os recursos gastos pelo SUS em 2024, seria possível realizar milhões de procedimentos de saúde, como exames laboratoriais e de imagem, além de milhares de sessões de quimioterapia e atendimentos obstétricos, segundo a pesquisa.
A análise considera apenas internações hospitalares financiadas com recursos federais. Ficam de fora atendimentos ambulatoriais, reabilitação física, acompanhamento psicológico e os custos arcados por estados, municípios e hospitais privados, o que indica que o impacto financeiro real da violência armada é ainda maior.
A maioria das internações está relacionada à violência intencional: agressões por terceiros respondem por 77,3% dos casos. Acidentes representam 14,6%, enquanto causas indeterminadas somam 4,7%. Lesões autoprovocadas com arma de fogo, associadas a tentativas de suicídio, correspondem a 3,5% dos registros, mas apresentaram crescimento expressivo nos últimos anos.
“A presença da arma numa situação de sofrimento psíquico é extremamente perigosa”, afirma Carolina. “A arma é um meio muito letal para a lesão autoprovocada, e isso acende um alerta importante para a saúde mental e para a necessidade de políticas específicas”, continua a diretora-executiva, que defende políticas específicas voltadas à saúde mental.
O perfil das vítimas segue o padrão da violência letal no país: 89% dos pacientes são homens, 82% são pessoas negras e mais da metade tem entre 15 e 29 anos. Outros 23% estão na faixa etária de 30 a 39 anos. Proporcionalmente, pessoas negras são mais afetadas por agressões com arma de fogo do que pessoas não negras, o que, segundo o instituto, reflete desigualdades estruturais persistentes.
As disparidades regionais também são significativas. Em 2024, o Nordeste concentrou 42% das internações por arma de fogo, seguido pelo Sudeste, com 33%. Norte e Nordeste apresentam taxas de hospitalização mais de duas vezes superiores às das demais regiões. Em estados como Maranhão, Pernambuco e Amazonas, o número de óbitos chega a ser quatro ou cinco vezes maior que o de internações, sugerindo alta letalidade e dificuldades de acesso ao atendimento hospitalar.
Além do impacto financeiro, a violência armada afeta o funcionamento dos serviços de saúde. Em áreas dominadas por grupos armados, unidades básicas suspendem atendimentos, profissionais atuam sob forte pressão e comunidades ficam sem acesso regular a cuidados essenciais. No Rio de Janeiro, mais de 700 atendimentos foram interrompidos até setembro deste ano por causa da violência.
Para Carolina Ricardo, políticas de segurança precisam incorporar a lógica da saúde pública, com foco territorializado e preventivo. Entre as medidas defendidas estão o controle responsável de armas, políticas sociais voltadas a jovens e maior integração entre saúde, assistência social e segurança pública.
A professora da USP Lorena Barberia, uma das coordenadoras de uma comissão da revista The Lancet sobre violência armada, avalia que o estudo qualifica o debate no Brasil e no exterior, mas representa apenas parte do problema. “Além do atendimento hospitalar, há uma cadeia de sequelas físicas e psicológicas que exige tratamento contínuo. Em um sistema com recursos limitados, isso gera custos de oportunidade: ao tratar ferimentos por armas de fogo, o Estado deixa de investir em outras áreas igualmente relevantes”, afirma.
Segundo ela, muitas vítimas sequer chegam ao hospital, o que agrava ainda mais o cenário. Para especialistas, ampliar e qualificar os dados é fundamental para dimensionar o custo real da violência armada e embasar políticas públicas capazes de reduzir seus impactos.
*Com informações da Folha.
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