Programa ‘Sim, Eu Posso’ forma terceira turma no Rio Grande do Sul

Formatura da terceira turma do “Sim, eu Posso”, em Porto Alegre. Crédito: Arquivo Pessoal

Por Fabiana Reinholz | Porto Alegre (RS)
Do Brasil de Fato

O método de alfabetização cubano “Sim, Eu Posso”, que iniciou de forma tímida no Rio Grande do Sul em outubro de 2024, encerra o ano de 2025 com a formação de três turmas. A primeira formatura ocorreu em agosto, na Vila Pedreira, no bairro Cristal, em Porto Alegre; a segunda, em novembro, com a turma da Vila Jardim; e a terceira foi realizada neste sábado (13), na associação Olufè, no bairro Glória.

Criado pela pedagoga cubana Leonela Inés Relys Díaz, o método já alfabetizou quase 11 milhões de pessoas em mais de 30 países. No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pioneiro na implementação do programa, estima que mais de 100 mil pessoas tenham sido alfabetizadas pelo “Sim, Eu Posso”. Em 2024, por exemplo, 1.067 educandos se formaram em Maricá (RJ).

No RS a articulação da primeira turma foi feita pelo Fórum Social das Periferias com a Associação Cultural José Martí do RS, e implementada juntamente com MST, Associação dos Moradores Força Maior da Vila Pedreira, Levante Popular da Juventude, Organização Olufé, Esperançar e outros parceiros. O método parte da realidade dos alunos e utiliza uma abordagem que associa letras a números para facilitar o aprendizado, e alfabetiza entre quatro e cinco meses.

“Porto Alegre, dia 1º de agosto de 2025. Venho através dessas poucas palavras para agradecer a todos que participaram do projeto ‘Sim, Eu Posso‘. Se não fosse vocês, eu não estaria aqui lendo esta carta”, declarou emocionada a vendedora autônoma Natália dos Reis Souza, de 57 anos, durante a cerimônia de formatura da primeira turma.

Natália dos Reis Souza e Altino Vieira Padilha formandos da primeira turma do método. Crédito: Jorge Leão

Experiência da Vila Jardim

Integrante do Mãos Solidárias RS e da Cozinha Solidária da Vila Jardim, Lucas Gertz Monteiro ressalta que MST, Levante Popular da Juventude e Mãos Solidárias têm organizado milhares de turmas de alfabetização nas periferias do país. “A primeira experiência no Rio Grande do Sul ocorreu em 2024, na Associação Força Maior da Pedreira”, conta.

Em 2025, segundo Monteiro, o programa teve quatro novas turmas: Vila Jardim, Glória, Barracão e Morro da Cruz. Algumas ainda estão em processo de construção. “Para o próximo ano, teremos mais de dez turmas em Porto Alegre e possibilidade de ampliar para cidades do interior como Pelotas, Santa Maria e São Lourenço do Sul.”

A turma da Vila Jardim iniciou as aulas em maio de 2025. “Começamos com dez educandos e cinco educadores locais. As aulas aconteciam de segunda a quarta, das 19h às 21h, sem interrupções e com pouquíssimas faltas.”

As atividades ocorreram em um bar desativado. “Era uma estrutura bastante precária, mas com a ajuda da comunidade, dos movimentos sociais e de parceiros como Koinos, José Martí e Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro/RS), conseguimos dar um novo sentido ao espaço. Nos primeiros dias, a Brigada Militar chegou a nos abordar com a justificativa de segurança”, relata Monteiro.

A formatura da turma da Vila Jardim aconteceu num salão da comunidade da Bom Jesus, com toga, jantar e leitura da carta. Foram oito educandos que chegaram até o final. “Foi um momento de muita alegria e de reafirmação do compromisso com a luta, a educação popular e a construção de um novo mundo”.

Formatura da segunda turma do “Sim, Eu Posso”. Crédito: Mariana Dambroz

“Alfabetizar é um ato de coragem e amor”

“O processo da turma foi muito desafiador, mas também profundamente gratificante. Tivemos alunos com histórias de vida diferentes, cada um carregando suas próprias dificuldades, medos e inseguranças em relação ao aprender. Ao longo do caminho, enfrentamos faltas, cansaço, problemas pessoais e o desafio constante de manter todos motivados. Ainda assim, com acolhimento, paciência e persistência, o grupo foi criando vínculo, confiança e avançando no aprendizado”, relata a educadora da segunda turma do programa “Sim, Eu Posso” Thauana Cristina Santos da Luz.

Segundo ela, a segunda turma do programa se formou com oito alunos, e a formatura aconteceu no dia 22 de novembro. A educadora ressalta que cada aluno formado representa uma vitória coletiva e individual. “Chegar até o final exigiu muito mais do que aprender letras e números: exigiu coragem”, afirma.

Para Luz, o “Sim, Eu Posso” vai além da alfabetização, ele representa oportunidade, dignidade e inclusão. “É a chance de jovens, adultos e idosos acessarem um direito básico que, por diversos motivos, lhes foi negado ao longo da vida”. O programa, de acordo com ela, devolve autonomia, voz e autoestima, permitindo que as pessoas leiam o mundo com outros olhos e passem a ocupar espaços com mais segurança e confiança.

A educadora também ressalta o impacto pessoal da experiência, que a transformou como pessoa e como educadora. “Cada aula, cada dificuldade superada e cada pequena conquista dos alunos reforçou em mim a certeza de que educar é um ato de amor, escuta e compromisso social. Ver um aluno escrever o próprio nome, ler uma palavra pela primeira vez ou acreditar em si mesmo não tem preço. O programa me ensinou que ninguém chega até aqui sozinho e que, quando dizemos ‘sim’ para o outro, também dizemos ‘sim’ para um mundo mais justo e humano”, conclui.

“O que eu não aprendi antes, eu aprendi aqui com elas”, afirma Rosângela da Costa Ribeiro. Crédito: Arquivo Pessoal

Além da sala de aula

Formanda da segunda turma, Rosângela da Costa Ribeiro, de 39 anos, que relata a importância do curso em sua trajetória. “O ‘Sim, Eu Posso’ significou muita coisa pra mim. O que eu não aprendi antes, eu aprendi aqui com elas”, afirma.

Ela destaca o vínculo com as educadoras. “As professoras, assim, não tem nem como te explicar. A Lilian, a Thauana, a Nath, a Francieli… foram umas pessoas muito, muito boas pra mim. Significam muito as minhas professoras”, diz.

Ribeiro conta que teve pouco acesso à educação formal antes do curso. “Eu aprendi pouco. Terminei o primeiro, não cheguei para o segundo. Mas aqui, descobri essas aulas e aprendi bastante”, relata. As aulas aconteciam às segundas, terças e quartas-feiras, no turno da noite. “Aprendi muita coisa mesmo com elas”, reforça.

A formanda também lembra da cerimônia de encerramento. “Depois teve a formatura. Tava muito bonito, tiramos fotos. Sem explicação”, afirma. Segundo ela, o envolvimento das educadoras vai além da sala de aula. “Elas ajudam o pessoal quando tem doação, quando tem verdura, quando tem festa. Eu desejo tudo de bom pra elas”, completa.

Alfabetização construída na solidariedade

Segundo a integrante do coletivo de educação do MST/RS Juliane Soares Ribeiro, as turmas no estado foram “construídas a partir da articulação solidária” entre movimentos sociais, entidades parceiras e cozinhas solidárias da região Metropolitana. “A gente iniciou esse processo ainda em 2024, com a abertura da primeira turma na Pedreira”, recorda.

Ela destaca que, a partir dessa primeira experiência, foi possível consolidar novas turmas. “Depois dessa experiência, a gente conseguiu consolidar mais outras turmas, na Cozinha Solidária da Vila Jardim e na Cozinha da Olufé.”

Para Ribeiro, o projeto vai além da alfabetização e responde a demandas urgentes de territórios onde as políticas públicas não chegam. “É um projeto importante não só para nós, do Movimento Sem Terra, mas para todos os movimentos e entidades comprometidas com a classe trabalhadora. A gente vê nessas comunidades várias demandas, vê que as políticas públicas não chegam, e é através desse trabalho, da solidariedade, dessa junção de várias mãos, que a gente consegue dar conta de algumas demandas.”

Ela relata a emoção ao acompanhar o processo de alfabetização de adultos e idosos. “É muito significativo ver esses sujeitos, esses adultos, idosos que não conseguiam nem escrever o seu nome, chegarem ao final do processo e ler uma carta, ler com toda a sua força o próprio nome. Isso nos dá uma alegria imensurável, porque retoma essa dignidade, essa possibilidade e essa crença na educação.”

Ribeiro reforça que o método incentiva a continuidade dos estudos. “O ‘Sim, Eu Posso’ alfabetiza em um curto período de tempo, mas a gente segue incentivando que esses sujeitos procurem o próprio processo da escolarização, que sigam estudando, que se sintam capazes, que sim, eles podem.”

Encontros, pertencimento e transformação

Para a integrante coletivo de educação, o processo foi um dos processos mais transformadores em que trabalhou no último período. “Você vê a mudança do sujeito acontecendo. Pessoas que, já com uma idade avançada, nem passava mais pela cabeça delas que poderiam se alfabetizar.”

Ela destaca ainda o caráter coletivo das turmas. “Um outro processo muito bonito do ‘Sim, Eu Posso’ é o dos encontros. São turmas coletivas, que proporcionam convivência, atividades conjuntas e troca de experiências. Isso também foi muito bonito.”

Sobre o futuro do projeto, Ribeiro aponta a ampliação das parcerias como prioridade. “A gente espera ampliar essa parceria, seguir trabalhando entre os movimentos sociais e as entidades que nos apoiaram, ampliar essa experiência para mais cozinhas. Pretendemos iniciar o próximo ano já fazendo formação de educadores, que é um passo primordial do método, para montar novas turmas ainda no primeiro semestre.”

Combate ao analfabetismo como dívida histórica

Para o presidente da Associação Cultural José Martí do RS (ACJM/RS), Ricardo Haesbaert, a terceira formatura teve um significado especial. “Foi uma formatura muito significativa, pois se tratavam de sete mulheres que não tiveram oportunidade de aprender a ler e escrever. O Brasil tem essa chaga e essa dívida com o povo brasileiro.”

Ele lembra que o analfabetismo ainda atinge uma parcela expressiva da população. “São quase 10% da população que ainda não sabe ler e escrever, em torno de quase 20 milhões de pessoas. Isso significa que o Estado falhou.”

Haesbaert destaca o trabalho conjunto das entidades envolvidas. “É um trabalho conjunto de várias entidades, mas principalmente do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, da Associação Cultural José Martí e do Levante Popular da Juventude.”

Segundo ele, o projeto começou de forma modesta no estado. “O Sim, Eu Posso começou no ano passado aqui no Rio Grande do Sul com apenas dois alunos na Vila Pedreira. Hoje já são 17 pessoas que tiveram a oportunidade de aprender a ler e escrever.”

Ele ressalta ainda a base freiriana do método. “Esse método cubano foi realizado por uma pedagoga cubana em cima do método Paulo Freire. Para mim, isso tem um significado tremendo.”

Sobre o futuro, Haesbaert aponta a formação de novos educadores e cobra investimentos públicos. “Temos mais umas seis comunidades com pessoas esperando para que a gente implante o projeto. É um futuro promissor, mas esperamos que os governos federal, estadual e municipal invistam mais em educação e na superação dessa chaga que é o analfabetismo. Porque povo culto é povo livre, como dizia José Martí.”

Alexandre Cordeiro e Brandina da Silva Alegre – Crédito: Arquivo Pessoal

“É devolver a dignidade a cada pessoa”

A formatura da terceira turma do programa de alfabetização “Sim, Eu Posso”, realizada no dia 13 de dezembro de 2025, marcou um momento histórico para a organização Olùfé e para sete mulheres que concluíram o processo após meses de desafios e superação. A iniciativa utiliza o método cubano de alfabetização e tem como foco o enfrentamento ao analfabetismo como instrumento de transformação social.

Para o professor Alexandre Cordeiro, presidente da Olùfé, a formatura simboliza resistência e transformação com a formatura das sete alunas “que desafiaram as estatísticas e transformaram suas realidades”. Segundo ele, o processo foi marcado por dificuldades. “Foram meses de luta contra o cansaço, o desânimo e as intempéries do clima, como o frio e a chuva. No entanto, a resistência prevaleceu, e cada uma dessas mulheres triunfou”, destaca.

Cordeiro ressalta que o método vai além da alfabetização. “Vejo como uma transformação de vida. É devolver a dignidade a cada pessoa através do acesso ao conhecimento”, afirma. A expectativa da entidade é formar uma nova turma em 2026 e criar círculos de cultura para garantir a continuidade do aprendizado.

“Achei que estudar já não era mais pra mim”

Aos 71 anos, Brandina da Silva Alegre, uma das formandas da terceira turma, também celebrou a conquista do certificado. Nascida no interior, ela conta que não teve acesso à escola na infância. “A gente morava para fora, no interior, e os colégios eram muito longe, então não tinha como estudar”, relata.

Com o passar dos anos, o estudo foi ficando para depois. “O tempo foi passando e ficou pra trás. Eu já pensei que não ia conseguir estudar mais mesmo, né? A idade chegou”, diz. Morando há 11 anos em Porto Alegre, no bairro Cascata, ela afirma que nunca imaginou voltar à sala de aula. “Achei que estudar já não era mais pra mim.”

A oportunidade surgiu com o “Sim, Eu Posso”, realizado na rua Cláudio Honor Moraes. “O projeto abriu as portas. A nossa professora Andressa abriu uma porta que mudou a minha vida”, afirma. “Hoje eu já posso dizer que consigo ler, escrever. Muita coisa eu aprendi.”

Mãe de dois filhos, avó de oito netos e bisavó de 15, Brandina era a única entre os irmãos que não havia estudado. Para ela, a alfabetização representa autonomia. “A importância que tem pra mim é muito grande. Eu não preciso depender dos outros pra tudo. Eu faço as minhas coisas. Não preciso pedir pros outros ler pra mim. Mesmo meio atrapalhada, eu sei me defender”, conclui.

Editado por: Marcelo Ferreira

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