O alerta chileno e a falsa “escolha muito difícil”
por Gustavo Tapioca
A extrema direita avança na América Latina e o Brasil está no centro do tabuleiro. O resultado das eleições presidenciais no Chile não é um episódio isolado nem um desvio histórico. É um aviso direto de que aprendeu a vencer eleições, unificar seus fragmentos no segundo turno e governar para corroer a democracia por dentro.
A vitória de José Antonio Kast no segundo turno das eleições presidenciais chilena marca uma inflexão profunda no cenário político da América Latina. Não se trata apenas da derrota do campo progressista chileno, mas da consolidação de um modelo autoritário contemporâneo, que combina legitimidade eleitoral, guerra cultural e destruição institucional gradual.
Reorganização reacionária
O Chile, por décadas apresentado como vitrine de estabilidade democrática e institucional na região, mostrou que nenhuma democracia está imunizada. Quando o medo social, o ressentimento econômico e a desinformação operam juntos, o autoritarismo deixa de se apresentar como ruptura e passa a se vender como solução
A reação do presidente colombiano Gustavo Petro foi imediata e simbólica. “Os ventos da morte estão chegando”, afirmou. Longe de exagero retórico, a frase traduz a percepção de que a América Latina vive um momento de reorganização reacionária, na qual projetos derrotados pela história retornam reembalados, higienizados e normalizados.
A presidenta do México, Claudia Sheinbaum, também reagiu: “Acho que este é um momento de reflexão para os movimentos progressistas na América Latina sobre por que essas circunstâncias estão ocorrendo. Acredito que isso não acontecerá no México, porque há muito apoio popular ao governo, porque estamos cumprindo nossas promessas”.
A Folha destacou em editorial que o triunfo da direita no Chile se soma a outros recentes: na Argentina, com Milei, na Bolívia, com Rodrigo Paz, no Equador, com Daniel Noboa. E no Estadão, Carolina Marins informa que “ainda faltam três meses para a posse do conservador José Antonio Kast, novo presidente do Chile, em 11 de março, mas ele já indicou o que esperar de seu governo. Kast será o primeiro presidente chileno abertamente admirador do ditador Augusto Pinochet.”
Fragmentar para vencer
A vitória de Kast, no Chile, não foi obra do acaso. Ela seguiu uma estratégia já conhecida da extrema direita internacional: dispersão calculada no primeiro turno, seguida de unificação total no segundo. Liberais clássicos, conservadores tradicionais, ultraliberais, reacionários morais e nostálgicos da ditadura fecharam fileiras em torno de um objetivo comum: impedir a continuidade de um projeto progressista.
Esse método não é improvisado. Ele foi testado em diferentes países e contextos. A extrema direita compreendeu que pode perder batalhas internas no primeiro turno, desde que chegue unificada ao momento decisivo. O Chile de 2025 é a demonstração empírica dessa lógica.
Para o Brasil, o alerta é direto. A capacidade da direita radical de se reagrupar no segundo turno, é uma ameaça concreta para 2026.
Internacional autoritária
O que ocorreu no Chile não pode ser lido como um fenômeno estritamente nacional. A eleição de Kast insere o país em uma engrenagem maior: a consolidação de uma internacional autoritária latino-americana, conectada ideológica e estrategicamente.
Javier Milei, na Argentina, Nayib Bukele, em El Salvador, Jair Bolsonaro, no Brasil, e agora José Antonio Kast, no Chile, não são líderes isolados. São expressões nacionais de um mesmo projeto histórico. Mudam os discursos, os estilos e as retóricas, mas permanecem os fundamentos: autoritarismo eleitoral, destruição do Estado social, repressão seletiva, ataque à mídia, à ciência, à universidade, ao Judiciário.
Na Argentina, Milei governa convertendo o ultraliberalismo em violência social explícita. O Estado é tratado como inimigo, exceto quando serve para reprimir protestos, criminalizar sindicatos e impor ajustes brutais. Em El Salvador, Bukele transformou o medo em política de Estado, promovendo encarceramentos em massa, militarização da vida civil e neutralização das instituições de controle, tudo sob aplauso popular.
Flávio como presidente ou vice
No Brasil, Jair Bolsonaro foi o laboratório dessa engrenagem. Seu governo, de 2019 a 2022, normalizou o discurso golpista, atacou sistematicamente o STF, desacreditou a mídia, estimulou a guerra cultural permanente e fundiu política com fundamentalismo religioso.
Bolsonaro não governa. Está cumprindo pena por tentativa de golpe contra a democracia. Mas o bolsonarismo permanece como tecnologia de poder. Ele luta, mesmo cumprindo pena pesada, para emplacar seu filho Flávio na cabeça de chapa ou na posição de vice-presidente. Em troca, Jair Bolsonaro, oferece seu cacife em torno de 25% de votos cativos capaz de decidir a eleição de 2026.
Os números da Quaest, divulgados nesta terça-feira 16, reforçam que a extrema direita brasileira já opera segundo um roteiro testado na América Latina: pulveriza candidaturas no primeiro turno para ocupar todo o espectro conservador, mas preserva um polo hegemônico capaz de unificar forças no segundo.
A consolidação de Flávio Bolsonaro como nome mais competitivo no momento não expressa vitalidade programática, e sim a eficácia de uma estratégia eleitoral defensiva, cujo objetivo central não é vencer pelo convencimento, mas impedir, a qualquer custo, a continuidade do projeto progressista de Lula.
José Antonio Kast fecha este circuito ao reabilitar explicitamente o pinochetismo como alternativa legítima no século XXI. Seu projeto não é apenas conservador: é revisionista, autoritário e antidemocrático. Nesse sentido, Milei, Bukele, Bolsonaros e Kast são politicamente intercambiáveis; variações de um mesmo modelo subordinado à extrema-direita trumpista.
O STF como alvo estratégico
Há um elemento comum que une todas essas experiências: o ataque frontal ao Judiciário, especialmente às cortes constitucionais. Trump nos Estados Unidos, Bolsonaros no Brasil, Kast no Chile e seus aliados compartilham a mesma narrativa: juízes seriam inimigos do povo; tribunais, entraves à vontade popular; garantias constitucionais, privilégios indevidos.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tornou-se alvo prioritário exatamente porque cumpriu sua função histórica: conter o avanço golpista quando outras instituições falharam ou hesitaram. O STF foi o dique que impediu a ruptura aberta após 2022.
Atacar o Supremo não é efeito colateral. É um objetivo estratégico. Sem o STF, a Constituição de 1988 se torna letra morta. Não por acaso, a extrema direita brasileira insiste em discursos de fechamento, intimidação e deslegitimação da Corte.
Democracia ou autoritarismo
A eleição presidencial de 2026, no Brasil, não será uma disputa convencional. Será um plebiscito civilizatório. O bolsonarismo, mesmo com Jair Bolsonaro condenado e politicamente enfraquecido, permanece ativo como força social, cultural e política. Seu objetivo é claro: eleger um sucessor que possa neutralizar o Judiciário, reescrever a história recente, promover anistias e reabrir as portas do autoritarismo pelo voto. Por isso, pretende colocar um Bolsonaro na chapa presidencial para conservar no imaginário do seu eleitorado cativo a marca trágica da família.
Nesse cenário, Lula não representa apenas um projeto de governo. Representa um anteparo democrático. Com todos os limites e contradições de um governo de coalizão, Lula simboliza hoje a defesa do Estado de Direito, da política como instrumento de inclusão e da democracia como valor inegociável.
O preço da escolha errada
Quando a extrema direita vence, não é apenas uma eleição que se perde. Perde-se o freio institucional, perde-se o pacto civilizatório, perde-se o direito de discordar sem medo. O que vem depois nunca é anunciado nas urnas: vem a perseguição travestida de ordem, a violência travestida de moral, o autoritarismo travestido de vontade popular.
O Chile mostrou que a história não avisa duas vezes. A América Latina já conhece esse filme — e sempre paga caro. Em 2026, o Brasil não terá o luxo da ingenuidade. Ou defende a democracia enquanto ainda é possível, ou assistirá, mais uma vez, à sua demolição sendo aplaudida como solução.
“Uma escolha muito difícil”
Às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, contra Fernando Haddad, candidato do PT e do campo progressista, O Estado de S. Paulo publicou um editorial que se tornaria símbolo de uma época. O título era “Uma escolha muito difícil”. O texto reconhecia os riscos autoritários de Bolsonaro, mas defendia seu voto como um mal menor diante do antipetismo. A história mostrou o custo dessa escolha.
Hoje, o Brasil retorna a esse ponto — mas em condições ainda mais graves. Trata-se, novamente, de uma escolha muito difícil. Não porque os projetos em disputa sejam semelhantes, mas porque são radicalmente opostos, como eram em 2022. Mais difícil porque exige clareza histórica, responsabilidade democrática e disposição para enfrentar a máquina de desinformação, o ódio organizado e o cinismo político.
Em 2026, o eleitor brasileiro será confrontado com um dilema brutal: aderir ao projeto autoritário que conecta Trump, Kast, Milei, Bukele e o bolsonarismo — com sua promessa de ordem pela força, moral pelo medo e política pela exclusão — ou defender o projeto democrático, progressista e constitucional representado por Lula, com todas as suas contradições, mas ancorado na Constituição, nos direitos sociais e na soberania nacional.
Não será uma escolha muito difícil. Será uma escolha decisiva.
Gustavo Tapioca é jornalista formado pela UFBa e MA pela Universidade de Wisconsin. Ex-diretor de Redação do Jornal da Bahia. Assessor de Comunicação da Telebrás, Oficial de Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do IICA/OEA. Autor de Meninos do Rio Vermelho, publicado pela Fundação Jorge Amado.
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