A Declaração de Guerra à Venezuela Explicada
Por Marcelo Zero*
A declaração de Trump, na sua rede social, sobre a Venezuela, praticamente uma declaração de guerra, fez as máscaras caírem.
Qualquer pessoa medianamente informada sabia, desde sempre, que a Venezuela tinha e tem uma participação apenas marginal no tráfico de drogas internacional, e que a pressão dos EUA sobre esse país possuía apenas um verdadeiro objetivo: derrubar o governo de Maduro.
Surpreendeu, entretanto, a afirmação de Trump de que Maduro teria “roubado” petróleo, bens e terras dos EUA.
Para além de um delírio “monroísta”, há uma lógica (imperial, mas há) por trás dessa declaração. Uma lógica que a mídia convencional não soube explicar.
Tentarei.
A Venezuela entrou em default da sua dívida com o EUA em 2017, mas a PDVSA continuou a fazer pagamentos aos detentores de um título específico (bond), com vencimento em 2020.
Ele foi emitido em 2016 sob uma oferta de swap, que substituiu a dívida com vencimento no ano seguinte. Esse título foi garantido por uma hipoteca de 50,1% da refinaria Citgo Holding, por meio da PDV Holding, subsidiária integral da PDVSA. Não obstante, os pagamentos foram interrompidos depois que a Assembleia Nacional, liderada pela oposição, declarou o contrato do título ilegal, em outubro de 2019.
Entretanto, a mineradora canadense Crystallex International, no início de 2016, havia ganho uma arbitragem, de US$ 1,4 bilhão contra a Venezuela pela expropriação de um projeto pelo governo do antecessor de Maduro, Hugo Chávez.
A Crystallex, posteriormente, convenceu um tribunal dos EUA de que a PDV Holding era o alter ego financeiro da Venezuela. Então, o tribunal estadunidense considerou a empresa responsável pela dívida do país.
O processo acabou gerando um leilão das ações da PDV Holding, decidido no mês passado em favor de uma afiliada do fundo de hedge Elliott Investment Management, que reservou US$ 2,1 bilhões para pagar e extinguir o título da PDVSA 2020.
A venda para a Amber Energy, da Elliott, não será executada até que o Tesouro dos EUA dê luz verde.
Enquanto isso, a crise da dívida mais ampla da Venezuela e as sanções dos EUA arrastaram o preço desses títulos para baixo, tendo sido negociados a apenas 10 centavos de dólar, em meados de 2020, muito abaixo do seu preço de face (US$1,00).
Contudo, os desdobramentos judiciais, principalmente o de que que a dívida era executável sob a lei de Nova York, reavivaram o interesse dos investidores.
A remoção de muitas sanções dos EUA em outubro de 2023, com Biden, serviu como um novo catalisador, elevando os preços acima de 80 centavos de dólar, onde permaneceram durante a maior parte do tempo, desde então.
Mas o aumento da pressão militar de Trump sobre o governo Maduro levou o preço dos títulos acima do seu valor nominal (US$ 1,00) por papel. Agora, os papéis valem US$ 1, 25. Nada mal. De 10 centavos de dólar, para US$ 1, 25. A Maior Armada posta sobre o Caribe e a América do Sul serviu, como se vê, para muitos interesses.
O problema está em que essa dívida é paga, obviamente, por exportações de petróleo venezuelano para os EUA, feitas principalmente pela Chevron.
Assim, os Estados Unidos continuam a ser, mesmo com as sanções, um destino importante do petróleo da Venezuela, importando 150.000 de barris /dia.
Esse comércio persiste, apesar das severas sanções impostas, por causa da Licença Geral 41A/41B (GL 41A/41B), uma exceção legal concedida pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC).
Tal licença permite que grandes empresas de energia americanas, principalmente a Chevron, exportem petróleo bruto venezuelano para os EUA, sob rígidas condições de “dívida por petróleo”.
O mecanismo permite que empresas dos EUA recuperem dívidas não pagas da estatal petrolífera PDVSA, ao mesmo tempo que proíbe quaisquer pagamentos diretos em dinheiro, impostos ou royalties ao governo Maduro, que está sancionado.
Esse é o problema (para a Venezuela). É um petróleo que sai de graça, ou praticamente de graça. para os EUA.
Por isso, a Venezuela prefere exportar para outros destinos.
As exportações de petróleo bruto da Venezuela atingiram 784.000 barris por dia, no último mês de novembro, superando a média de 751.000 bpd de 2025.
Só que a China permaneceu como principal compradora do petróleo venezuelano, absorvendo 613.000 bpd.
Trump está furioso, pois acha que esse petróleo pertence aos EUA. Deveria ir gratuitamente para lá, sob as condições de “dívida por petróleo”.
Trump também está furioso com outra coisa.
A capacidade da Venezuela de exportar petróleo bruto pesado depende de outro país sob sanções dos EUA: a Rússia.
Como a Faixa do Orinoco, na Venezuela, produz petróleo bruto extrapesado, que se comporta como lama à temperatura ambiente, o uso de um diluente como a nafta é essencial para misturar ao petróleo para poder transportá-lo por oleoduto. Sem isso, o petróleo extrapesado não é muito atraente. Não circula em oleodutos.
Pois bem, em novembro, Caracas importou 419 mil barris de nafta russa.
O Bloqueio Total ordenado por Trump tem, portanto, um duplo objetivo: impedir exportação de petróleo venezuelano para a China e, ao mesmo tempo, impedir importação de nafta russa para a Venezuela.
Com isso, Trump pretende sufocar totalmente a economia da Venezuela, derrubar Maduro, e meter a mão na maior reserva de hidrocarbonetos do mundo.
Uma reserva que fica a apenas 3 dias de barco das grandes refinarias estadunidenses do Golfo do México.
As reservas do Golfo Pérsico demoram 20 dias para levar petróleo para os EUA, e com um frete bem mais caro. Ademais, esse petróleo tem de ser regiamente pago, é claro.
Historicamente, o petróleo venezuelano ia totalmente, ou quase que totalmente, para os EUA.
Trump quer assegurar, de novo, esse acesso privilegiado à maior reserva de óleo do planeta. E receber muito petróleo de graça, ou a preço muito reduzido, até que a dívida, ou a suposta dívida, seja paga e todos os “prejuízos ressarcidos”.
Ao mesmo tempo, quer expulsar a China e a Rússia da região.
Por conseguinte, o problema nunca foi o “narcoterrorismo” da Venezuela, o problema sempre foi o “petroterrorismo” dos EUA.
Se acontecer o pior, uma invasão, de fato, da Venezuela, será a abertura de uma Caixa de Pandora em toda a América do Sul e em toda a América Latina.
Quando Trump diz “America First”, ele não está dizendo apenas “Estados Unidos em Primeiro Lugar”, ele está dizendo, de fato, a América, o continente americano, em primeiro lugar. Como disse Marco Rubio, o fortalecimento da América começa em sua região.
Isto é, ele quer assegurar a influência exclusiva dos EUA na América Latina, ter acesso privilegiado e exclusivo aos seus vastos recursos naturais, eliminar quaisquer influências de China, Rússia e de outros países na região, implantar governos submissos à geopolítica estadunidense e sabotar também a integração regional, submetendo os países do subcontinente a negociações bilaterais assimétricas.
Os EUA estimularam o Brexit (Bannon foi instrumental no referendo catastrófico), e buscam dividir ainda mais a Europa, atraindo países como Polônia, Itália, Hungria, Áustria etc.
Querem fazer a mesma coisa aqui.
Querem um apanhado de países atomizados, submetidos a acordos bilaterais assimétricos ditados por Trump. O velho divide et impera.
Não duvido que o Acordo Mercosul/UE esteja sendo sabotado não apenas por agricultores franceses, mas também pelo plantio de interesses geopolíticos estadunidenses na Europa.
Afinal, Trump não quer globalismos ou regionalismos. Descende de tradição antiga.
Quando Woodrow Wilson quis colocar os EUA na Liga das Nações, o Senado estadunidense recusou, alegando que tal adesão “destruiria a Doutrina Monroe”.
Wilson tentou negociar uma cláusula na Liga, a qual afirmava que a eventual adesão dos EUA a essa organização internacional “não impediria que os EUA usassem de força militar na América Latina, sempre que considerassem necessário” (sim, isso foi escrito com todas as letras).
Mesmo com a incrível aceitação dessa “pérola” pela Liga, o Senado dos EUA acabou por rejeitar a entrada desse país na Liga das Nações, precursora malfadada da ONU.
Essa declaração de guerra dos EUA à Venezuela, que é praticamente uma declaração de guerra à nossa região, precisa ser levada, com urgência, ao Conselho de Segurança da ONU, mesmo sabendo que qualquer iniciativa será vetada pelos EUA.
A coisa é muito séria. Nossa região poderia estar prestes a se tornar algo próximo ao Oriente Médio, no ápice da “Guerra ao Terror”.
A Venezuela é apenas um primeiro passo. Outros (Cuba, Nicarágua, Colômbia etc.) poderão vir.
E o Brasil, mesmo com as negociações exitosas recentes, não estaria a salvo de intervenções geopolíticas, econômicas e financeiras, se assim for decidido, por um presidente mercurial, com base no Corolário Trump da Doutrina Monroe.
Complica o fato de estarmos entrando em um ano eleitoral, quando a guerra híbrida de Trump contra governos progressistas da região deverá se manifestar com mais vigor.
O Brasil, sua democracia e seu protagonismo continuam em perigo.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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