Um acordo que atravessa mais de três décadas, por Maria Luiza Falcão

Um acordo que atravessa mais de três décadas

por Maria Luiza Falcão Silva

A insistência do Brasil em manter vivo o Acordo Mercosul–União Europeia, mesmo diante das resistências crescentes dentro do próprio bloco europeu, precisa ser compreendida a partir de um realismo político elementar. Não se trata de ingenuidade, nem de apego acrítico a um tratado negociado ao longo de décadas. Trata-se de pragmatismo em um mundo que se tornou mais fragmentado, mais protecionista e menos previsível — e de cálculo político em um momento específico da diplomacia brasileira.

O comércio internacional deixou de ser apenas instrumento de crescimento e voltou a ser, de forma explícita, ferramenta de poder. Tarifas, sanções, subsídios e restrições tecnológicas passaram a integrar o cotidiano das grandes potências. Nesse contexto, preservar canais de acesso a mercados amplos e relativamente estáveis tornou-se uma necessidade estratégica, sobretudo para países de renda média como o Brasil.

Um mercado grande, rico e ainda relevante

A União Europeia continua sendo um dos maiores espaços consumidores do planeta, reunindo cerca de 450 milhões de habitantes, com alto poder aquisitivo médio e padrões de consumo sofisticados. Em termos populacionais, trata-se de um mercado maior do que o dos Estados Unidos e, do ponto de vista institucional, ainda mais previsível do que boa parte do sistema internacional atual. Para o Brasil, manter acesso preferencial a esse espaço ajuda a reduzir riscos em um cenário marcado por guerras, sanções cruzadas e crescente instabilidade comercial.

Além do agronegócio, a Europa segue sendo destino relevante para segmentos específicos da pauta exportadora brasileira, como aeronáutica, celulose, papel, químicos e produtos semi-industrializados. Em um ambiente global volátil, garantir canais de exportação relativamente estáveis contribui para a geração de divisas e para a redução da dependência excessiva de poucos parceiros. Essa racionalidade ajuda a explicar por que Brasília continua defendendo o acordo, apesar de suas fragilidades.

Um acordo desenhado em outro mundo

O Acordo Mercosul–União Europeia começou a ser esboçado no final dos anos 1990, no auge da globalização liberal. O Brasil era governado por Fernando Henrique Cardoso, cuja política externa apostava na abertura comercial como atalho para a modernização econômica, mesmo ao custo da perda de instrumentos de política industrial. A Argentina estava sob o final do governo Carlos Menem e, em seguida, Fernando de la Rúa, ambos comprometidos com uma agenda de liberalização acelerada, privatizações e alinhamento automático aos centros de poder.

O Uruguai de Julio María Sanguinetti atuava como aliado desse desenho. Pequeno e aberto, via a integração com a Europa como estratégia de sobrevivência econômica, sem questionar os impactos estruturais para o conjunto da região. Ainda assim, havia coesão mínima no bloco e nenhum governo colocava em dúvida a própria existência do Mercosul.

Do lado europeu, lideranças como Jacques Chirac e Gerhard Schröder negociavam a partir de uma posição confortável: protegiam sua agricultura via Política Agrícola Comum, ampliavam mercados para sua indústria e ainda se apresentavam como defensores do multilateralismo.

A China era periférica, a hegemonia norte-americana parecia incontestável e a globalização era tratada como destino inevitável.

Nada disso existe hoje.

Um Mercosul fragmentado e um mundo multipolar

O Brasil de Lula em seu terceiro mandato opera em um ambiente completamente distinto. A Argentina sob Javier Milei rompe abertamente com a lógica de integração produtiva regional, trata o Mercosul como entrave ideológico e aposta numa desregulamentação extrema que esvazia qualquer projeto coletivo. O país que nos anos 1990 empurrava o bloco para abrir agora o empurra para a irrelevância.

O Uruguai, após o ciclo liberal de Luis Lacalle Pou, muda de comando, mas herda um debate aberto sobre flexibilização e acordos fora do bloco, enfraquecendo ainda mais a capacidade do Mercosul de negociar de forma coesa. A coordenação regional, que já era frágil, tornou-se instável.

Ao mesmo tempo, a China transformou-se no principal parceiro comercial do Brasil, investidor central em infraestrutura, energia e indústria e ator decisivo na reorganização das cadeias globais. Essa centralidade é incontornável, mas também cria vulnerabilidades associadas à excessiva concentração de fluxos comerciais. Diversificar relações e preservar canais com a Europa deixa de ser opção ideológica e passa a ser cálculo estratégico.

A resistência francesa e o cálculo político europeu

O paradoxo é que o Brasil insiste justamente quando a União Europeia revela suas próprias fissuras. A França de Emmanuel Macron lidera a resistência ao acordo, pressionada por um setor agrícola fortemente subsidiado, politicamente organizado e socialmente sensível. Em meio ao desgaste do governo, ao avanço da extrema direita e a protestos recorrentes no campo, o acordo com o Mercosul tornou-se símbolo conveniente de disputa doméstica.

Exigir salvaguardas adicionais, cláusulas de reciprocidade e adiamentos não é apenas preocupação ambiental ou técnica: é resposta a tensões políticas internas francesas. A Itália oscila entre pragmatismo econômico e alinhamento com Paris, enquanto outros países acompanham com cautela. O resultado é um acordo que já era assimétrico e que corre o risco de se tornar ainda mais restritivo para o Mercosul.

Lula, a presidência do Mercosul e o tempo político

É nesse contexto que se insere o interesse explícito do presidente Lula em assinar o acordo durante a presidência brasileira do Mercosul. Há, evidentemente, um componente político: consolidar o protagonismo diplomático do Brasil, reafirmar o país como interlocutor confiável entre Norte e Sul e evitar que o desfecho do tratado fique condicionado a governos regionais menos comprometidos com a integração.

Mas há também cálculo estratégico. Lula sabe que o tempo não joga a favor do acordo. A fragmentação do Mercosul, a instabilidade política europeia e o avanço de agendas protecionistas tornam cada vez mais incerta qualquer ratificação futura. Assinar agora significa, para o Brasil, tentar preservar algum grau de previsibilidade em um mundo em rápida deterioração institucional.

O problema é que pragmatismo não pode significar resignação. Defender o acordo faz sentido como estratégia de curto prazo para evitar isolamento relativo. Aceitar um tratado concebido em outro mundo, sem instrumentos de defesa industrial, tecnológica e produtiva, é outra coisa.

O desafio brasileiro não é escolher entre abrir ou fechar, mas decidir como e em quais termos se integra ao comércio internacional. Negociar com a Europa é legítimo. Fazer isso sem revisão profunda de um acordo fora do tempo é o risco que permanece no centro do debate.

Maria Luiza Falcão Silva – MSc em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).

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