O potencial bélico das usinas nucleares, por Heitor Scalambrini Costa

O potencial bélico das usinas nucleares

por Heitor Scalambrini Costa

“Se os reatores fossem seguros, as indústrias nucleares não exigiriam proteção de
responsabilidade contra acidentes garantidos pelo governo, como condição para gerar eletricidade.”
Kristin Shrader-Frechette (filósofa da ciência, professora e ativista ambiental)

“A energia nuclear é um combustível ruim, um combustível sujo, um combustível perigoso”
Paul Keating (ex-primeiro-ministro da Austrália).

A história da energia nuclear está intrinsecamente ligada ao seu potencial bélico, e aos interesses militares e armamentistas de um país.  As principais pesquisas e o desenvolvimento inicial da tecnologia nuclear foram impulsionados pelo objetivo de criar armas poderosas e destrutivas. Como consequência os Estados Unidos lançaram duas bombas atômicas no Japão no final da 2ª Guerra Mundial, a “Little Boy” (de urânio) em Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, e “Fat Man” (de plutônio) em Nagasaki, em 9 de agosto de 1945, causando mortes em larga escala, destruição e inaugurando a Era Nuclear. 

Após a guerra, a tecnologia nuclear continuou a ser desenvolvida principalmente para fins militares durante a Guerra Fria, com o objetivo de criar armas cada vez mais devastadoras. Milhares de testes nucleares foram realizados pelas duas grandes potências que surgiram no pós-guerra, Estados Unidos e União Soviética. 

Só a partir da década de 1950, com iniciativas como o programa “Átomos para a Paz” e o início da operação da primeira usina nuclear civil em Obninsk, na União Soviética (1954), é que a aplicação civil para geração de eletricidade começou a se desenvolver e a expandir. 

O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), assinado por quase todos os países em julho de 1968, visava impedir a disseminação de armas nucleares e promover a cooperação tecnológica entre países, contribuiu para uma evolução do chamado uso pacífico da energia nuclear. As principais aplicações foram para a produção da eletricidade, medicina nuclear, agricultura e indústria.

Mesmo com o TNP alguns países burlaram o tratado e desenvolveram a bomba atômica. Mais recentemente, para “driblar” este acordo, a Arábia Saudita (assinou o TNP) e o Paquistão (não assinou o TNP) assinaram um pacto de defesa mútua. Embora as autoridades paquistanesas neguem oficialmente um “guarda-chuva nuclear” explícito, a parceria levanta especulações sobre a possibilidade de cooperação ou a “terceirização” da dissuasão nuclear. Um exemplo do que pode acontecer diante das crescentes tensões geopolíticas no mundo atual.

Os riscos da energia nuclear incluem a contaminação por resíduos radioativos, que duram milênios, e a possibilidade de acidentes catastróficos, que liberam radiação, contaminando solo, ar e água, exigindo evacuações de grandes contingentes populacionais, causando doenças graves (câncer, leucemia). Os impactos sociais, com o descarte inadequado de lixo nuclear, constituem um perigo constante para o meio ambiente e a saúde humana/animal. Acidentes importantes ocorreram em usinas nucleoelétricas, o de Chernobyl (Ucrânia-1986), o de Fukushima (Japão-2011), e o maior acidente radiológico do mundo em Goiânia (Brasil-1987), mostraram os perigos desastrosos da liberação de substâncias radioativas. 

A segurança e o descarte adequado de resíduos continuam sendo questões centrais no debate sobre a energia nuclear. Resíduos de alta radioatividade continuam a irradiar por milhares de anos, constituindo um grave legado para as gerações futuras, já que não existe uma solução definitiva e duradoura para o armazenamento de tais substâncias. Também tem sido demonstrado que em uma guerra como da Ucrânia x Rússia, às usinas nucleares se tornam alvos prioritários e preferenciais de bombardeios. Foi o caso da usina de Zaporizhzhia bombardeada pelos russos. Também foi atacada a usina de Chernobyl, que depois do acidente foi construída uma cobertura de aço em torno do reator acidentado para confinar e impedir que as emissões de materiais radioativos fossem liberadas para o meio ambiente. Agora ambas estão na iminência de liberar radioatividade para o meio ambiente.

No Brasil, em particular, a história do nuclear não foi diferente. Começou em 1956 com a criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e um estudo para uma usina em Angra dos Reis. O programa evoluiu, com a compra de um reator da Westinghouse/EUA na década de 1970, e Angra 1 que começou a operar em 1985. Posteriormente, em plena ditadura militar, o Acordo Brasil/Alemanha possibilitou o início da operação de Angra 2, em 2001. Atualmente, o país possui duas usinas em funcionamento, que já ultrapassaram suas vidas úteis, e uma terceira, Angra 3, que está paralisada.

Vários acontecimentos ocorreram que devem ser lembrados com relação ao programa nuclear brasileiro. Episódios lamentáveis, controversos que atestam a falta de credibilidade do setor nuclear brasileiro (https://www.congressoemfoco.com.br/artigo/108097/programa-nuclear-brasileiro–pau-que-nasce-torto-morre-torto). Mais recentemente o desgaste da empresa Eletronuclear, responsável pelas usinas, ficou mais evidenciado, diante de uma crise financeira sem precedentes, oriunda de má gestão. Com um rombo em suas contas no final de outubro de 2025, a empresa (grande sumidouro do dinheiro público), solicitou um aporte de R$ 1,4 bilhão ao tesouro federal para cobrir suas contas, diante da iminência de um colapso financeiro. A informação a respeito foi amplamente divulgada.

Esses e outros episódios aprofundaram o crescente descrédito sobre o desempenho da indústria nuclear, e de seus gestores, privilegiados com supersalários. O desgaste da Eletronuclear sobressaiu, diante da crise financeira e gestão temerária, com uma política de demissões em massa, que acabou levando à greve trabalhadores das usinas e da parte administrativa.

Nada indica que usinas nucleares sejam necessárias ao país. As fontes renováveis constituem a espinha dorsal da matriz elétrica, e podem garantir a segurança energética em um contexto em que a diversidade de fontes energéticas renováveis participam da matriz e se complementam entre si, levando em conta a intermitência da energia solar e eólica. Para um grupo cada vez maior da sociedade brasileira a energia nuclear é vista como uma alternativa de alto risco, cara e perigosa, em um país com extraordinário potencial de fontes renováveis.

Neste momento discute a conclusão ou não da usina de Angra 3. Projetada há mais de 40 anos pelo acordo nuclear Brasil-Alemanha, teve inúmeros problemas de ordem técnica-econômica e permanece obsoleta e inacabada. A decisão da continuidade ou não, dessa aventura, será do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que conta com estudos de viabilidade realizados pelo BNDES para sua decisão. Tais estudos são mantidos em inexplicável sigilo, caracterizando a falta de transparência e acesso à informação do setor.

A decisão sobre Angra 3 refletirá sobre a expansão de usinas nucleares no país, visto que no planejamento do Plano Nacional de Energia 2050, prevê a construção de mais 10.000 MW nucleares. A nuclearização do país terá como reflexo imediato o aumento das tarifas para o consumidor, já que todos pagarão a conta. O custo da energia nucleoelétrica chega a ser 4 vezes maior do que a de fontes renováveis (solar e eólica).

Também esta decisão incidirá sobre o que fazer com Angra 1 e Angra 2, que precisam de dinheiro constante, seja via aportes públicos, dívidas, ou receitas da própria operação para cobrir custos operacionais, manutenção, combustível e investimentos, enfrentando desafios financeiros que levaram a pedidos constantes de socorro ao tesouro nacional. Os custos têm superado em muito o que a Eletronuclear arrecada com a venda da energia gerada.

Até o momento um “pingo de juízo”, de bom senso e racionalidade tem prevalecido no Ministério da Fazenda que resiste a aportes públicos em uma empresa estatal que gera um negócio que nada contribui para o desenvolvimento nacional, e nem é necessária para a segurança energética do país. Todavia os lobistas infiltrados no governo federal e no congresso nacional não desistem.

Assim diante de fatos concretos é fundamental abandonar a construção de novas usinas, descomissionar as já existentes e deixar o urânio debaixo da terra. Decisão que só valorizaria o país para os brasileiros, e nossa posição no tabuleiro internacional das nações pacíficas que rejeitam a destruição, a morte, e prezam pela vida no planeta Terra.

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Heitor Scalambrini Costa – Físico, graduado na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, com mestrado em Ciências e Tecnologia Nuclear na UFPE, e doutorado na Universidade de Marselha/Comissariado de Energia Atômica-França. É integrante da Articulação Antinuclear Brasileira. Professor associado aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.

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