Conheça a “tecnologia social do cuidado” utilizada pelo Setor de Saúde do MST para atuar pós tornados no PR

Espaço de Saúde Popular Luiza Aparecida, no assentamento 8 de Junho. Foto: Marcos Bueno

Por Diangela Menegazzi e Ednubia Ghisi
Da Página do MST

Após os tornados que devastaram comunidades do Paraná no dia 7 de novembro, em 11 municípios, a solidariedade organizada se tornou a principal força para sustentar quem perdeu casas, plantações, referências e espaços públicos. Desde 12 de novembro, o Setor de Saúde do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) atua levando escuta, práticas de saúde popular e articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS) para amenizar o sofrimento das pessoas atingidas e ajudar na reconstrução.

O centro comunitário da Associação 8 de Junho, em Laranjeiras do Sul, se transformou na sede da Brigada de Solidariedade do MST em apoio às famílias afetadas. Além de cozinha solidária, alojamento e organização das equipes de infraestrutura para reconstrução das casas, foi criado o Espaço de Saúde Popular Luiza Aparecida. Ali, o cuidado começa cedo: às 6h da manhã, quando os primeiros chás calmantes e digestivos já estão prontos para acolher a militância que atua nos mutirões, e também se deslocando para atender as famílias atingidas e que precisam de alívio físico ou emocional.

A atuação tem sido especialmente em Rio Bonito do Iguaçu, na área urbana, em assentamentos e acampamentos, e também no assentamento Nova Geração, em Guarapuava – municípios em que os tornados foram mais devastadores, chegando à classificação F4, com até 413 quilômetros por hora.

Desde os primeiros dias pós-desastre, o Setor de Saúde do Movimento percebeu que as lesões mais profundas não eram apenas físicas. Em meio aos escombros, predominavam sinais de esgotamento emocional: insônia, ansiedade, angústia, sensação de impotência, desesperança, revelando que uma lesão física é visível; o trauma psicológico é invisível e só é acessado pela escuta.

A escuta atenta como ferramenta de cuidado é o primeiro passo no atendimento às famílias. Foto: Antônio Santos

Para quem atua com saúde popular, o cuidado integral é inseparável da relação entre corpo, mente, território e coletividade. É por isso que, antes de atender os moradores, a primeira etapa da brigada foi cuidar da própria militância que está desde as primeiras horas do evento ajudando na reconstrução das comunidades.

Chás, tinturas, pomadas, auriculoterapia, massagem, ventosa, alinhamento de energia, quiropraxia e rodas de conversa são parte das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) que fundamentam esse trabalho. Tudo passa por um princípio central: a escuta atenta como ferramenta de cuidado.

A antropóloga Camila Medeiros esteve no Paraná como ponto focal da Força Nacional do SUS na atuação do governo brasileiro após os tornados, e relacionou com o atendimento emergencial no período das enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul, em 2024, e enfatiza a capacidade do MST em se organizar de forma rápida e massiva: “A gente observa esse trabalho todo como uma tecnologia social do cuidado que o MST promove em resposta a desastres e emergências. Porque uma forma de readaptação fundamental, passado o momento mais crítico do pós-desastre, é você garantir no momento mais acentuado que as pessoas tenham acesso a direitos, moradia, alimentação, segurança e, principalmente, o sentimento de pertença a um coletivo. O MST promove isso tudo.”

Desde 2024, camponesas e camponeses integrantes do Setor de Saúde do MST de todo o Paraná estão participando de cursos e intercâmbios sobre as PICS para multiplicar e enraizar as práticas nas comunidades campesinas. A formação é desenvolvida por meio do projeto Bem Viver, realizado pelo Instituto Latino-Americano de Agroecologia Contestado (ICA), em parceria com a Itaipu Binacional, por meio do Programa Mais que Energia, alinhado ao governo federal, e com a Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus Foz do Iguaçu.

Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) fundamentam o trabalho do Setor de Saúde do MST. Fotos: Antônio Santos

“Pra mim, o respeito maior é ouvir a pessoa”, afirma Dona Maria Natividade, moradora do assentamento Contestado, na Lapa, e integrante do Setor de Saúde. “A mãe natureza é perfeita; tem todos os chazinhos. A gente precisa conhecer, respeitar e saber usar. A saúde popular parte disso: escutar, partilhar saberes, cuidar do corpo inteiro, do ambiente e das relações.”

Dona Maria Natividade em atendimento da saúde popular no Assentamento Nova Geração, em Guarapuava. Foto: Antônio Santos

No assentamento Nova Geração, em Guarapuava, Elza Silvério de Almeida descreveu o início dos trabalhos: “O primeiro olhar foi ver o estrago que o tornado deixou. Começamos com aferição de pressão, escuta, massagem, óleo essencial. A cada dia a gente descobria que era possível fazer mais uma coisa. As famílias estão sofrendo, mas o setor está aqui e é importante que esteja. É um momento de aprendizagem e de crescimento como coletividade.”

No cotidiano da brigada, pequenos gestos tornam o cuidado palpável: o chá quente ao amanhecer, a mão que massageia, o silêncio respeitoso para acolher o choro, a visita que devolve um pouco de segurança a quem já não dorme em paz desde o vento forte. Nesses gestos tão simples e tão poderosos é que a saúde popular reafirma seu sentido no MST: cuidado como resistência, como reconstrução e como prática política de afirmação da vida.

No cotidiano da brigada, pequenos gestos tornam o cuidado palpável: a mão que massageia, a visita que devolve um pouco de segurança a quem já não dorme em paz desde o vento forte. Fotos: Antônio Santos

Trabalho conjunto com o SUS fortalece respostas ao desastre

A brigada se soma ao trabalho da Força Nacional do SUS, da Secretaria Municipal de Saúde e da Vigilância Sanitária, em um processo de complementaridade entre a saúde popular e a atenção primária.

Trabalho da Força Nacional do SUS em parceria com a Brigada de Solidariedade do MST em áreas de Reforma Agrária afetadas por temporais em Quedas do Iguaçu. Foto: Antônio Santos

Camila Medeiros, ponto focal da Força Nacional do SUS na atuação do governo brasileiro no Paraná após os tornados, destaca a importância dessa articulação: “A gente veio com equipes de psicólogos, psiquiatras e terapeutas, porque a saúde mental foi uma demanda muito forte no município. Com o MST, o trabalho foi potente, pela capilaridade que o movimento tem na zona rural. Isso permite que as orientações cheguem a mais pessoas, multiplicando o cuidado”.

Camila Medeiros, ponto focal da Força Nacional do SUS, e Roberto Baggio, dirigente nacional do MST em atividade em Quedas do Iguaçu. Foto: Antônio Santos

Ela explica que o objetivo da Força Nacional é fortalecer a autonomia do município, deixando capacidades instaladas para que o cuidado continue após a saída das equipes externas.

Brigada de Solidariedade do MST em Rio Bonito do Iguaçu soma forças com o SUS para atender famílias. Foto: Antônio Santos

A parceria gerou a “Formação de Brigadas Populares de Resposta a Desastres”, um curso de 80 horas que será ofertado às brigadistas do Setor de Saúde, com parte prática já em andamento durante a própria ação. O objetivo é preparar equipes para respostas rápidas a futuros desastres climáticos, que tendem a se intensificar. O curso é organizado pela Força Nacional do SUS (FN-SUS) e CoLaboratório de Ciência, Tecnologia, Inovação e Sociedade (CTIS), que integra a Fundação Oswaldo Cruz – Brasília (FioCruz).

A atuação integrada entre a Brigada de Solidariedade e o Sistema Único de Saúde (SUS) tem se mostrado fundamental para fortalecer o cuidado às famílias e ampliar o acesso a ações preventivas e educativas no território. Por meio dessa parceria, as equipes conseguem articular saberes, recursos e estratégias que valorizam tanto o acompanhamento clínico quanto o olhar comunitário.

Nas atividades realizadas, profissionais do SUS têm contribuído com orientações técnicas, participação em rodas de conversa e apoio em encaminhamentos necessários, enquanto a Brigada de Saúde do MST oferece escuta cuidadosa, identificação de demandas e mediação entre os serviços e a comunidade.

Esse trabalho conjunto reforça a importância do SUS como política pública essencial e evidencia como a cooperação entre governos e sociedade civil organizada pode melhorar significativamente a qualidade das ações e o bem-estar das populações atendidas em eventos climáticos, que estão afetando com grande frequência a vida de milhares de pessoas no Brasil e no mundo.

Por meio dessa parceria, as equipes conseguem articular saberes, recursos e estratégias que valorizam tanto o acompanhamento clínico quanto o olhar comunitário. Fotos: Antônio Santos

Cooperação entre governos e sociedade civil organizada pode melhorar significativamente a qualidade das ações e o bem-estar das populações atendidas em eventos climáticos. Foto: Marcos Bueno

Cuidado como resistência e construção de futuro

Integrantes do Setor da Saúde conversam com famílias no assentamento Nova Geração, em Guarapuava. Foto: Antônio Santos

Para Sirlei de Moraes, dirigente do Setor de Saúde do MST, a brigada em Rio Bonito do Iguaçu e Guarapuava expressa a história de mais de 20 anos de construção do cuidado popular no movimento: “Cuidamos da militância com práticas integrativas, fitoterapia e orientação para o bem-estar coletivo. Mas também já vamos preparando o plano de ação para atuar com as famílias, dialogando com as políticas públicas e garantindo continuidade no atendimento.”

A força da organização popular e a importância da resposta comunitária diante de eventos climáticos extremos são o elemento central, avalia Maria Izabel Grein, integrante da coordenação do Setor de Saúde do MST no Paraná com mais de 40 anos de atuação no Movimento: “Nós só conseguiremos enfrentar se tiver organização popular forte, que possa responder com rapidez e com solidariedade e com muito carinho. Só o ser humano que se sente um coletivo pode dar essa resposta”.

O trabalho iniciado após o tornado será mantido ao longo dos próximos meses, com uma multiplicidade de instituições que precisam se envolver para dar solução. “E essa organização coletiva, ela ajuda para que todas essas instituições e esse direito que nós temos, eles possam ser atingidos, porque essa organização coletiva ajuda a trazer de volta a vida e a vida comunitária”, completa a militante.

“Nós só conseguiremos enfrentar se tiver organização popular forte, que possa responder com rapidez e com solidariedade e com muito carinho”, diz Maria Izabel Grein, integrante da coordenação do Setor de Saúde do MST no Paraná. Foto: Antônio Santos

Ancestralidade viva na luta pelo território

Na saúde popular, o cuidado com a vida nasce da memória, da ancestralidade e da coletividade. É a partir dessa herança que Sirlei de Morais se reconhece como cuidadora e guardiã dos saberes tradicionais. “Eu trago um sangue. A minha descendência é afro, é negra, é indígena”, afirma, ao relatar uma história familiar marcada pelo uso das plantas medicinais, dos benzimentos e dos remédios caseiros, transmitidos pela mãe, pelo avô e pela avó, saberes que “nunca saíram de nós”.

“Não é somente porque agora. É porque isso está na nossa essência de cuidar da vida, de ser solidário pela vida”, Sirlei de Moraes. Foto: Antônio Santos

Esse conhecimento ancestral se manteve a partir das práticas familiares e comunitárias, e se renovaram nos territórios de luta. Sirlei conta que foi no cotidiano do Movimento Sem Terra que esse vínculo com a natureza se aprofundou: “Foi que a gente vai deixar fluir cada vez mais esse sabor, esse gostar, esse viver da natureza”. A saúde popular, para ela, está diretamente ligada às experiências coletivas e aos momentos de maior vulnerabilidade, quando a vida precisa ser defendida com urgência.

“O conhecimento flui num período de muito sofrimento”, relata, ao lembrar dos despejos e da fome enfrentados nos anos 1980, período de origem do MST e quando a família de Sirlei se insere no movimento. Ela chama a atenção para o papel das mulheres nesses contextos, por serem as que zelam pelo cotidiano da vida, compartilham saberes e buscam na floresta e nos quintais os meios para garantir a sobrevivência. “Elas buscam juntar aquilo que têm em cada casa, em cada mente, e fazem acontecer ali a vida, o milagre da vida”, diz Sirlei, destacando que esse cuidado vai “do nascer ao viver”.

Mais do que uma prática pontual, a saúde popular aparece como expressão de uma ética ancestral de solidariedade. “Não é somente porque agora. É porque isso está na nossa essência de cuidar da vida, de ser solidário pela vida”, afirma. Para Sirlei, é na coletividade que esse saber ganha força: “É nesse momento da vida, no coletivo, na coletividade, que as coisas acontecem”. Uma prática que brota da terra e da história, reafirmando a saúde popular como resistência, afeto e compromisso com a vida.

Continuidade e próximos passos

Depois de mais de 40 dias de Brigada de Solidariedade permanente e mais de mil militantes participantes de todo o Paraná, a primeira fase intensiva da brigada segue até o dia 19 de dezembro. Neste dia, será realizada a Celebração do Natal Solidário da Esperança, na região central de Rio Bonito do Iguaçu, com apresentações musicais, partilha de alimentos e entrega de cestas de alimentos da Reforma Agrária, em especial frutas, tubérculos e verduras.

Em 2026, os trabalhos da brigada de solidariedade continuam. O Setor de Saúde do MST retorna com acompanhamento regular e com o objetivo de fortalecer o enraizamento das práticas integrativas em cada comunidade.

Enquanto isso, a solidariedade segue: cada chá preparado, cada escuta, cada visita e cada cuidado oferecido reergue não apenas casas, mas vínculos, dignidades e a certeza de que ninguém precisa enfrentar a dor sozinha.

*Editado por Fernanda Alcântara

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