Barbarian: a casa que não devolve o sujeito, por Eliseu Venturi

Barbarian: a casa que não devolve o sujeito

por Eliseu Raphael Venturi

O filme Barbarian (“Noites Brutais”, 2022, Zach Cregger) organiza seu terror como uma pedagogia do limiar: o instante em que o cotidiano — aplicativo, reserva, chave no cofre, “check-in” automatizado — falha, e o que parecia apenas logística revela-se uma cena psíquica, isto é, um dispositivo de passagem em que o sujeito já não controla o que encontra, mas é encontrado por aquilo que evitava saber.

Tess chega ao bairro de Brightmoor, em Detroit, para uma entrevista e encontra a primeira fissura: a casa está “duplamente ocupada”, o espaço íntimo não é garantido por contrato, e o Outro (Keith) já está ali — cordial, plausível, correto.

O filme faz do constrangimento social — “ser educada”, “não exagerar”, “não acusar”, “não parecer paranoica” — uma coerção silenciosa que empurra a protagonista para dentro, não apesar do risco, mas por meio do risco. Esta é a primeira operação psicanalítica do roteiro: a violência contemporânea não começa necessariamente no porão; começa na obrigação de administrar a própria intuição para permanecer aceitável.

Brightmoor, no filme, não funciona apenas como “bairro decadente”, mas como signo: uma vizinhança rarefeita, marcada por vacância e desinvestimento, em que o vazio não é paisagem, é política. Ao ir à entrevista, Tess é advertida pela recrutadora sobre os riscos do local, e esse aviso, mais do que informar, explicita um regime: há territórios onde a proteção é intermitente, a presença pública é frágil, e a credibilidade do relato já chega diminuída.

A casa, nesse contexto, não é cenário: é topografia. A superfície iluminada (sala, cozinha, corredor) sustenta o pacto imaginário de normalidade: há vinho, há conversa, há o álibi do “nada aconteceu”, há até um esforço de Keith em performar segurança — esforço que intensifica a pergunta que o filme recusa resolver cedo: ele é ameaça, aliado, ou apenas o ponto cego por onde o medo se infiltra? O pacto é: “durma aqui, está tudo sob controle”.

E é justamente esse pacto que desaba quando o filme abre, literalmente, a dimensão subterrânea: o porão não é apenas um “segredo”; é o retorno do Real sob a forma de um espaço que não se deixa simbolizar, um excesso arquitetônico que não deveria existir — e que existe. Quando Tess encontra o quarto oculto e os sinais de captura e abuso, o horror não é o susto: é a constatação de que a casa já era uma máquina de destino antes de ela chegar, e que sua chegada apenas acionou uma repetição.

É aqui que Barbarian desloca a expectativa moral simplista do “monstro”: o filme não quer que o espectador encontre um mal “puro”, mas uma genealogia. Frank (o proprietário original, o operador do subterrâneo) institui um regime de gozo que não é episódico, é industrial: captura, grava, arquiva, reproduz — e produz, pela violência reiterada, uma descendência degradada, “cópia de cópia”, como o próprio filme explicita, não para chocar, mas para nomear o efeito transgeracional do abuso.

A “Mother”, então, aparece menos como origem do terror do que como seu resto vivo: uma maternidade reduzida a reflexo, uma função materna sem linguagem, colada ao imperativo de “cuidar” como comando automático, porque tudo o que poderia humanizá-la (laço, palavra, mundo) foi sequestrado antes. A leitura do diretor, ao descrevê-la como “inocente”, reforça o ponto: ela é um monstro trágico — não um vilão metafísico.

Essa inversão é decisiva: o título Barbarian não aponta apenas para o porão; aponta para uma economia masculina de barbárie que opera em diferentes estilos. Frank é a barbárie originária e explícita; AJ é a barbárie socialmente adaptada, narcísica, performática, que tenta transformar tudo em ativo — inclusive o túnel, inclusive o “extra” do imóvel, inclusive a possibilidade de lucrar sobre o subterrâneo.

Quando o filme muda de eixo e nos entrega AJ, não está apenas “trocando de protagonista”: está demonstrando que a violência muda de máscara, mas preserva a lógica de reduzir o outro (corpo, mulher, história) a instrumento de satisfação, de autopreservação, de ganho. E quando AJ empurra Tess para salvar a si mesmo, a cena é quase didática: a covardia não é acidente; é estrutura.

Há, por trás disso, uma tese clínica discretamente insistente: a angústia em Barbarian não é o medo do escuro, nem apenas o contraste entre claustro e aberto; é a experiência de que o Outro não garante. O contrato não garante, a polícia não garante, o discurso “racional” não garante, o charme não garante, a propriedade não garante. A cada tentativa de inscrição simbólica — “eu vi”, “há um quarto”, “há um túnel”, “alguém morreu” — o mundo responde com descrédito, burocracia, ironia ou com a forma mais cotidiana de recalque social: a suposição de que ela está “confusa”.

O filme foi explicitamente inspirado por The Gift of Fear (Gavin de Becker), livro que insiste na importância de confiar nos sinais e não neutralizar alertas internos para manter a etiqueta; e essa inspiração não é curiosidade de bastidor: é chave de leitura. Tess é submetida a uma ética impossível, em que ser prudente parece rude, e ser educada pode ser fatal.

Se a casa é topografia, o subterrâneo é arquivo: não o arquivo nobre da memória, mas o arquivo sujo daquilo que foi empurrado para baixo para que a superfície funcione. As fitas VHS encontradas por AJ (a prova gravada, o crime convertido em coleção) explicitam uma fantasia perversa fundamental: não basta fazer; é preciso registrar, como se a inscrição técnica substituísse a inscrição simbólica, como se a câmera pudesse garantir soberania total sobre o outro. A fita, aqui, é o supereu do gozo: “repita”, “guarde”, “acumule”, “não pare”. Por isso o horror de Barbarian não é apenas corporal; é administrativo: há uma gestão do abuso, uma logística da violação, uma arquitetura de repetição.

O suicídio de Frank, por sua vez, soa como o último gesto de domínio: morrer antes de ser nomeado pelo outro, antes da responsabilidade, antes do julgamento. A profundidade do subsolo é técnica de sigilo — e também autoenterro: uma forma de permanecer fora do mundo e fora da palavra. Ele tenta encerrar a história no ponto em que ainda escolhe o corte; e, ao fazê-lo, transfere aos sobreviventes o trabalho do trauma: narrar, sustentar, carregar.

E o que Tess faz, diante dessa máquina? O filme lhe dá uma insistência que pode ser lida como sintoma: ela volta. Volta quando a polícia não acredita. Volta quando poderia fugir. Volta para salvar AJ, que já demonstrou não merecer confiança. Esse retorno é mais inquietante do que qualquer corredor: sugere que, diante do Real, o sujeito tenta transformar o terror em tarefa, como se cumprir uma missão (“resgatar”, “resolver”, “dar sentido”) evitasse a queda mais dura: admitir que não há sentido a extrair, apenas uma decisão ética a tomar. Tess, nesse ponto, encarna a tensão entre cuidado e sacrifício: há cuidado que abre saída; e há cuidado que repete a captura sob outra gramática.

André, o homem em situação de rua que primeiro apavora Tess e depois a orienta, pode ser lido como função de mediação: uma espécie de alarme que insiste quando a superfície tenta domesticar o medo. Ele encarna, fora da protagonista, o “sinal” que já está no corpo e que ela quase neutraliza por etiqueta e dúvida. Sua eliminação, por sua vez, dramatiza um ponto político: há saberes que não se convertem em legitimidade; e há vozes que, por não contarem, são descartáveis.

O desfecho, ao colocar a “Mother” protegendo Tess na queda e, depois, sendo morta por ela, fecha o filme num paradoxo central: aquilo que foi produzido como monstruosidade pela barbárie ainda busca, de modo distorcido, algum laço; e o sujeito, para sobreviver, precisa recusar esse laço sem transformá-lo em moralismo fácil. Matar a “Mother” não é vitória contra o mal; é interrupção de uma cadeia. E sair andando ao amanhecer não é catarse: é resto — o tipo de sobrevivência em que nada “se resolve”, mas algo para de se repetir ali, ao menos naquela casa.

Referência
BARBARIAN. Direção: Zach Cregger. Produção: Arnon Milchan; Roy Lee; Raphael Margules; J.D. Lifshitz. Estados Unidos: Regency Enterprises; BoulderLight Pictures; Vertigo Entertainment; New Regency, 2022. Filme (102 min), son., color.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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