Existe um tipo de constrangimento que não nasce do erro, mas da certeza. Aquele momento em que alguém fala com a tranquilidade de quem acredita estar exercendo apenas a razão quando, na verdade, está defendendo algo muito mais antigo e frágil: um lugar de poder.
O caso Chico Bosco não é um escândalo isolado, nem um tropeço individual. Ele é uma cena recorrente da vida pública contemporânea: o homem que fala como se estivesse apenas “opinando”, “ponderando”, “complexificando”, quando o que está em jogo não é a qualidade da fala, mas a perda progressiva de um lugar histórico de autoridade.
Porque não se trata apenas do direito de falar. Trata-se do poder de definir o que conta como fala legítima.
Ao longo da história, muitos homens disseram coisas com absoluta convicção e só depois ficaram ridículos. Não porque eram ignorantes, mas porque estavam protegidos por um mundo que os escutava automaticamente. Médicos, artistas, intelectuais, jornalistas, pais, professores. Homens certos de que sua posição era neutra, universal, equilibrada. Homens que não percebiam que sua calma vinha do fato de que nada realmente lhes era exigido.
Quando esse lugar começa a ruir, algo entra em curto-circuito. Não é apenas discordância. É angústia. A masculinidade, como estrutura simbólica, sempre se organizou em torno da ideia de potência. Não apenas potência sexual, mas potência de decisão, de nomeação, de comando. Em Lacan, o falo não é o órgão, é o significante do poder. Aquilo que organiza quem fala, quem manda, quem é reconhecido.
Na lógica da sexuação lacaniana, o lado masculino se sustenta na fantasia de totalidade: a crença de que há um ponto de exceção que garante a ordem. O homem é todo. A Mulher é não-toda. Quando esse ponto vacila, o sujeito não sente apenas que perdeu um debate. Ele sente que perdeu consistência. É por isso que a perda de poder costuma ser vivida como impotência. E impotência, para a masculinidade tradicional, é insuportável.
Thamy Ayouch insiste nesse ponto ao pensar as masculinidades contemporâneas: o homem que se vê destituído do lugar fálico não reage apenas com tristeza ou reflexão, muitas vezes reage com defesa, agressividade, racionalização excessiva. Surge a fala explicativa, o texto ponderado, o argumento que pede “menos emoção” justamente quando o que está em jogo é a violência.
O problema não é errar. O problema é não suportar não estar no centro.
Quando mulheres falam de violência, de medo, de exaustão, de morte, muitos homens ainda respondem como se estivessem num seminário. Como se fosse preciso equilibrar versões, proteger nuances, salvar a complexidade do mundo. Mas essa complexidade costuma funcionar como um escudo elegante para não tocar no essencial: o fato de que o poder mata.
E mata de forma desigual.
Por isso, insistir que o debate é sobre “dar a vez” é pouco. Isso suaviza demais o conflito. Não estamos falando de turnos de fala num auditório civilizado. Estamos falando de quem tem o poder de definir a realidade e quem paga com o corpo por essa definição.
Quando mulheres dizem “estão nos matando”, não estão fazendo uma metáfora. Estão descrevendo um dado material da vida social. E diante disso, a reação masculina não pode ser uma explicação melhor formulada. Não pode ser um texto mais inteligente. Não pode ser mais uma tentativa de manter o falo ereto no plano simbólico enquanto tudo ao redor arde.
O silêncio, nesse contexto, não é apagamento. É responsabilidade.
Escutar não é passividade. É reconhecer que o mundo não gira mais em torno da sua interpretação.
O caso Chico Bosco incomoda porque expõe esse deslocamento. Não se trata de linchamento moral nem de erro individual. Trata-se da dificuldade masculina de lidar com a perda de um lugar que sempre pareceu natural mas nunca foi.
Talvez o que esteja sendo exigido agora não seja apenas “dar a vez”, mas aceitar que o poder mudou de lugar. E que insistir em falar como antes não é coragem, é atraso histórico.
Se mulheres estão dizendo que estão morrendo, o mínimo ético não é responder melhor.
É ouvir.
E, sobretudo, fazer algo para que parem de morrer.
Márcio Pereira Cabral é psicanalista, mestre pela UFRGS e diretor dos Instituto SIG – Psicanálise & Política e Instituto E Se Fosse Você?