O país encerra mais um ano sustentado pela contradição que o acompanha desde sempre: enquanto se prometem conciliações, pactos de governabilidade e gestos republicanos, a vida concreta das pessoas negras, das mulheres, dos povos tradicionais e da juventude periférica continua sendo o terreno mais vulnerável do projeto estatal brasileiro. A cada dezembro, as estatísticas nos lembram que a violência não tira férias, que o racismo não desacelera seu funcionamento e que a democracia segue em permanente disputa — sobretudo quando se avizinha um novo ciclo eleitoral.
O ano termina com o gosto amargo de quem perdeu muito: tempo, saúde, direitos, territórios, garantias mínimas e, em muitos casos, pessoas irrecuperáveis. Há famílias que encerram este dezembro reconfigurando ausências; há comunidades que resistiram apenas com o corpo; há mulheres que continuam tendo de sobreviver a um país que insiste em retirá-las de si mesmas. E, ainda assim, seguimos. Seguimos porque nunca nos foi permitida a desistência. Seguimos porque sabemos que a linha de frente raramente descansa, e porque estar na linha de frente não é uma escolha romântica, mas uma urgência histórica.
Ao longo deste ano, cada coluna publicada aqui foi uma tentativa de furar o véu da normalização. E não apenas de denunciar — mas de dialogar. Porque este espaço se tornou também um lugar de encontro: leitoras e leitores constantes, pessoas que retornam a cada semana, que enviam mensagens, que compartilham suas dores, suas revoltas e seus sonhos. Esse diálogo foi, e é, uma forma de respirar num país que tantas vezes tenta nos sufocar. A coluna se tornou uma casa possível em meio ao escombro, e isso só existe porque há quem, do outro lado, lê, sente e caminha junto.
Falamos neste ano da violência político-institucional dissimulada sob a aparência de rotinas burocráticas, da violência contra mulheres e meninas que se intensifica enquanto setores insistem em usar a “liberdade de expressão” como biombo para acobertar crimes de ódio, e das violências do território e da floresta que não são apenas pautas ambientais, mas expressões profundas da desigualdade racial e territorial produzida pelo Estado.
Também nos dedicamos ao que o Brasil insiste em evitar: nomear. Nomear o Estado antinegro. Nomear o pacto narcísico da branquitude que estrutura nossas instituições. Nomear a política que mutila corpos e futuros. Nomear a engrenagem técnica — pareceres, rubricas, silêncios administrativos — que produz violência com aparência de legalidade.
Mas este foi, também, um ano de persistência. Persistência radical, não retórica. Mães que transformam luto em luta quando o país tenta empurrá-las para o silêncio. Comunidades quilombolas que, mesmo sem titulação, seguem garantindo sobrevivência. Jovens ativistas que reinventam a política e levam para a COP30, para as ruas e para as assembleias uma linguagem que une justiça climática, racial e de gênero como um só campo de batalha.
Encerrar o ano, portanto, não é apenas contar os golpes sofridos. É reconhecer que, apesar de tudo, há fissuras na estrutura. Há frestas abertas por quem insiste, cotidianamente, em não morrer — no sentido pleno que Sueli Carneiro nos ensina.
E é preciso dizer, com toda a honestidade política: 2026 será decisivo. O próximo ano eleitoral não é apenas mais uma disputa por cargos; é um teste histórico sobre que país queremos sustentar e que projeto civilizatório estamos dispostos a defender. A extrema-direita segue viva, organizada, financiada e sedenta de retorno. Os ataques à democracia não ficaram no passado — foram apenas momentaneamente contidos. O racismo seguirá sendo a espinha dorsal que estrutura a disputa. O ódio seguirá instrumentalizado como método de propaganda. A desinformação seguirá sendo arma.
2026 exigirá coragem, lucidez e organização. Exigirá que sigamos na linha de frente mesmo quando o corpo pedir descanso. Exigirá que não abramos mão da crítica nem da firmeza, mas que preservemos a altivez necessária para lembrar que, apesar das ruínas, não somos um povo vencido.
O próximo ano não nos promete facilidade. Mas nos oferece, como sempre, escolhas. Escolher a política que protege em vez da que mutila. Escolher a palavra que denuncia em vez do silêncio cúmplice. Escolher construir um país que não transforme sua população negra em estatística e suas mulheres em manchetes trágicas.
Se este ano nos ensinou algo, foi que não basta sobreviver: é preciso insistir no país que queremos. E essa insistência — coletiva, teimosa, altiva — é ainda nosso gesto mais radical de futuro. Em 2026, que essa teimosia seja também projeto.