No fundo do poço, outro poço
Por Roberto Amaral*
“Cuidemos. A República pode afundar.”
– Manuel Domingos Neto
Sinal dos tristes tempos: devemos comemorar a suspensão por seis meses do mandato do deputado Glauber Braga, decretada pelo plenário da Câmara Federal na última quarta-feira (10/12/2025).
No dia anterior, por ordem do presidente da Casa, ele fôra agredido por gendarmes da polícia legislativa.
As hosanas são justificadas porque o corretivo previamente decidido pela direita era a pura e simples cassação do mandato do parlamentar fluminense, cumulada com oito anos de inelegibilidade — sua virtual expulsão da vida pública, que ele tanto dignifica.
Antes disso, pelas artes e sortilégios de Artur Lira – dublê de capo e feiticeiro –, Glauber era submetido ao Conselho de Ética. Nada ouviu ali que merecesse ser tomado como acusação séria, mas teve a perda do mandato indicada. A espada de Dâmocles pesa sobre sua cabeça desde março.
A reunião do Conselho era um teatro farsesco, como deveria ser o julgamento em plenário: ambos montados com script pré-definido para cumprir formalidades regimentais exigidas para sancionar uma sentença previamente lavrada.
Uma vindita anunciada, concebida no melhor estilo siciliano. Não faltou, sequer, o Don Corleone de ocasião. O pretexto alegado, à falta de algo melhor, foi um pontapé — aliás, muito bem dado — por Glauber em canalha assalariado pela direita para insultar sua mãe, então no leito de morte.
O pontapé era apenas um pretexto, mas pretexto necessário. O que se pretendia, como ficou evidente nos discursos da direita, era punir o “conjunto da obra”: o mandato socialista de Glauber, bravo, corajoso, limpo, denunciador da miséria do sistema e também das vigarices do submundo parlamentar — entre elas o “orçamento secreto”, peça de corrupção explícita engendrada por Arthur Lira.
Daí o coronel alagoano haver assumido o papel de arqui-inimigo de Glauber Braga, regendo uma orgia de ressentimentos e intolerância, a base paranoide do pensamento fascista.
É preciso ver em Glauber um alvo-símbolo escolhido a dedo. A vingança contra seu mandato visa a constranger o conjunto da esquerda, e assim deve ser vista e enfrentada.
Não é acaso que, na mesma sessão que o condenou, o plenário tenha absolvido a delinquente Carla Zambelli, ainda deputada por São Paulo (do PL, evidentemente), já condenada pelo STF a penas que somam 15 anos de prisão, por invasão ao sistema eletrônico do CNJ, porte ilegal de arma e assédio.
Refugiou-se na Itália, onde está presa e aguarda extradição. Imunes e impunes, como ela, permanecem outros “fora da lei”: o ex-policial federal Alexandre Ramagem (também deputado pelo PL), condenado pelo STF como partícipe da trama golpista, demitido por Lewandowski e homiziado nos EUA; e sua parelha, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL), conspirando desde fevereiro contra os interesses nacionais, promovendo lobby junto à Casa Branca para impor sanções a autoridades brasileiras e às nossas exportações — o “tarifaço” de Trump.
Crime de lesa-pátria, grave, e nada obstante impune.
Não é mera coincidência o encontro da violência contra Glauber com a anistia disfarçada de “dosimetria”.
Na mesma noite em que o deputado era agredido pela polícia legislativa (09/12), a mesma Câmara aprovava insólita e inaceitável redução geral de penas que pode abrir caminho para uma anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Mais uma ameaça à democracia; mais uma negociata entre costureiros da pequena política, senhores de baraço e cutelo de um Congresso perjuro que se requinta no reacionarismo, na deslealdade à República e no desprezo à democracia — esquecido de que, quando o edifício democrático cai, seus destroços soterram o Parlamento.
Lembrai-vos de 1937.
A proposta de anistia aos golpistas, que entrou na pauta com o codinome “dosimetria” para apaziguar o Centrão e recolocá-lo no redil da extrema-direita, foi o preço pago à chantagem explícita da autocandidatura do filho do capitão. Traficada por Hugo Motta, delfim de Lira e sucessor político inexcedível Eduardo Cunha.
No Senado, o projeto já corre célere. O relator, filhote da ditadura, mãos dadas com o inefável Paulinho da Força (réu em processo criminal no DF), declarou não descartar uma anistia “ampla, geral e irrestrita”.
Seria a reabilitação do golpismo, a pá de cal na responsabilidade democrática afirmada pelo STF, o anúncio da bolsonarização da política — a nos dizer que o fundo do poço esconde outro poço.
Enquanto a Câmara promovia essa deslealdade contra a República, o Senado aprovava, em dois turnos, a PEC que restringe os direitos dos povos originários a áreas ocupadas ou litigiosas até 1988.
Vitória do bilionário lobby do agronegócio, que se confunde com grilagem, depredação ambiental e mineração criminosa com o business que habita a Faria Lima, que dialoga com o submundo do Comando Vermelho e com a superestrutura legal do crime organizado.
Como lembra meu amigo Fernando Mousinho, o 8 de Janeiro não terminou. O ciclo de golpes de Estado vem de antes: inaugura-se com o impeachment de Dilma Rousseff, atravessa o impedimento de Lula de concorrer em 2018, chega à intentona fascista de 2023 e prossegue até agora, com ímpeto de seguir em frente. Tudo sob o manto das “quatro linhas da Constituição”, isto é, golpes operados dentro do poder, sem baionetas à mostra.
O ministro do Exército, general Villas Bôas, intimidou o STF a não conceder habeas corpus preventivo a Lula para impedir sua candidatura em 2018. E assim o líder das pesquisas foi excluído do pleito. Tudo “dentro da ordem”.
O que se seguiu é sabido. A intentona de 2023 faz parte do mesmo processo. Nada obstante a eleição de Lula em 2022, vivemos sob o mesmo ciclo golpista continuado, regido por maioria parlamentar empenhada na erosão da democracia.
O episódio Glauber Braga se insere na ofensiva de domínio da vida congressual pela extrema-direita, cuja tática é entravar o governo Lula e perseguir quadros da centro-esquerda.
Opera-se por todos os meios, a começar pela captura do Orçamento da União, que cerceia o Executivo, pulveriza e malversa os recursos públicos.
Essa prática ilícita, constitucionalmente vedada, consolidou-se como mecanismo de distribuição de emendas individuais, emendas de bancada e emendas “de relator remodeladas”, todas de execução opaca, todas a serviço do patrimonialismo rasteiro, do mandonismo local, do clientelismo político, da corrupção administrativa, da mentira eleitoral que destrói a legitimidade da representação popular, sem a qual não há República digna de honesta consideração.
O objetivo é o financiamento da renovação de mandatos parlamentares às custas do erário.
Veja-se o orçamento de 2025: ao governo federal são alocados R$ 170,7 bilhões em despesas não obrigatórias (tudo o que pode gerir com alguma liberdade na gerência de seus projetos) enquanto as emendas impositivas (destinadas pelos parlamentares aos seus currais eleitorais, consomem R$ 50,4 bilhões. Some-se o Fundo Partidário (R$ 1,319 bilhão) e, em ano eleitoral, o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (R$ 4,962 bilhões em 2024). Quanto será em 2026?
A maioria de direita ainda procura intimidar o STF, ameaçando reduzir suas competências constitucionais e abrir processos de impeachment contra seus ministros.
No Senado, seu presidente, dado a traquinagens de aprendiz de feiticeiro, tenta interferir na indicação do novo ministro do STF — prerrogativa do presidente da República. Diz-se amuado.
Com maioria absoluta nas duas Casas, a direita deixa claro que pode interromper qualquer programa de governo e até depor o presidente da República sem “firulas jurídicas”.
No mercado correm as listas de juristas como Miguel Reale Filho e paus-para-toda-obra do porte de Eduardo Cunha. Dilma bem que poderia ajudar, escrevendo suas memórias.
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Mulher de César — A modernidade atribui a César uma frase que não ditou (o conteúdo remete a Plutarco e Suetônio), traduzida para o vernáculo como: “Para a mulher de César, não basta ser séria; é preciso parecer séria.” O conteúdo é ético, mas profundamente político: das instituições e dos servidores públicos — governantes, legisladores, juízes, ministros, diplomatas, militares — exige-se não apenas competência e decoro, mas o afastamento de situações que possam suscitar suspeitas. A norma vale para o Legislativo, mas também para o Executivo, para o Judiciário, e mais ainda, para o STF, tão central hoje na defesa da República. O ministro Dias Toffoli, porém, rejeita esse preceito. A sociedade e seus pares esperam que explique o que fazia no jatinho particular que o levou a Lima para a final da Libertadores, na companhia de advogado que atua no STF como patrono dos interesses do Banco Master. E que, para o bem do processo, se declare impedido de relatar as investigações sobre o banco.
Piratas no Caribe — Em que corte internacional os EUA de Trump serão julgados pelo roubo de um navio-tanque da Venezuela na costa daquele país — roubo que os jornais têm apelidado, gentilmente, de “apreensão”? Ou o crime de pirataria só ocorre no nas águas da Somália?
Este artigo foi publicado originalmente no site de Carta Capital em 12/12/2025.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
*Com a colaboração de Pedro Amaral.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.