De novo, a reforma eleitoral, por Luis Felipe Miguel

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De novo, a reforma eleitoral

por Luis Felipe Miguel

Consta que, entre uma confusão e outra, Hugo Motta, o presidente nominal da Câmara dos Deputados, está articulando uma mudança no sistema eleitoral, para adoção do “voto distrital misto”. Contaria com o apoio do Centrão. O caminho é ressuscitar um antigo projeto do então senador José Serra, que o Senado aprovou em 2017 e logo foi engavetado.

Serra buscava imitar por aqui o sistema alemão. Nele, cada eleitor tem dois votos. Com o primeiro voto, elege o deputado de seu distrito, por maioria simples. Metade dos parlamentares são escolhidos assim. Com o segundo voto, escolhe uma lista partidária fechada, isto é, na qual a ordem dos candidatos que ocuparão cadeiras no parlamento é definida pelo partido e não pode ser alterada. Toda as cadeiras são distribuídas proporcionalmente de acordo com os segundos votos. Do total alcançado, são subtraídos os mandados já obtidos nos distritos – e as vagas restantes são preenchidas conforme a lista. Caso um partido obtenha nos distritos mais cadeiras do que ganharia pelos segundos votos (ou caso obtenha cadeiras nos distritos mas não alcance os 5% de votação na lista que servem de cláusula de barreira), o parlamento contará com alguns deputados a mais naquela legislatura.

A proposta de Serra já introduzia uma modificação importante em relação ao modelo da Alemanha. Ela previa que as listas seriam apresentadas localmente, isto é, cada partido faria uma lista para cada unidade da federação. A proporcionalidade seria aferida dentro de cada uma destas 27 circunscrições. Isto contraria o balanço previsto na regra alemã, em que o localismo do voto distrital deve ser equilibrado pelo caráter nacional das listas. Além disso, no nosso caso, a desproporcionalidade da representação da UFs fica mantida.

O substitutivo do deputado cearense Domingos Neto, aquele que Motta está querendo patrocinar, introduz outra mudança significativa. Ele abole o segundo voto, sob o argumento de tornar o sistema mais fácil para os eleitores. De fato, esta não é uma preocupação irrelevante. Um sistema eleitoral deve ser inteligível para os votantes, para que eles possam antecipar as consequências de suas escolhas. Muitas propostas de sistemas eleitorais sofisticados, cheios de qualidades na teoria, como o voto único transferível ou o chamado “voto líquido”, têm o problema de exigir eleitores qualificados demais.

Mas a mudança apresentada é prenhe de repercussões importantes. Sem o segundo voto, a proporcionalidade das listas será calculada a partir da soma dos primeiros votos obtidos nos distritos. Isso desequilibra a balança de poder entre as direções partidárias e os candidatos locais, em favor desses últimos. Contribui para a paroquialização da disputa, exatamente que o segundo voto pretendia impedir, ao permitir que o eleitor, depois de ter votado no candidato de seu distrito, escolhesse um partido de acordo com seu programa mais amplo. Além disso, nas circunstâncias brasileiras, bem diferentes das alemãs, de fragmentação partidária extrema, a eleição com dois votos permitiria alianças entre legendas, que deixariam de lançar candidatos ou lançariam candidatos proforma em alguns distritos. O substitutivo impede isso.

As alegações de Domingos Neto sobre as virtudes de seu projeto são variadas, algumas dignas de atenção, outras risíveis.

Kazimir Malevich, Composição suprematista (1916)

Ele diz que reduziria o custo das campanhas, já que as campanhas seriam concentradas em territórios menores. Isto é verdade para as áreas mais populosas, mas não necessariamente para a região Norte, onde um distrito pode ser do tamanho de um país.

Embora Domingos Neto não assuma a posição, certamente para não melindrar alguns de seus colegas de parlamento, faz circular a ideia de que a adoção do novo sistema eleitoral seria um complicador para a eleição de youtubers e outras subcelebridades, já que seria necessário ter uma base eleitoral concentrada em uma determinada região. É verdade, mas com isso se reduzem as chances também de candidatos que defendem bandeiras programáticas, vinculadas seja a interesses corporativos, seja a causas específicas. A grande virtude esperada da representação proporcional é permitir que o eleitor escolha qual de seus interesses ou identidades vai privilegiar na decisão do voto, não priorizando o local de moradia por default. A proposta do relator, embora mantenha o nome “misto”, anula por completo esta vantagem presumida do modelo proporcional.

Mas o principal argumento brandido por Domingos Neto, tentando surfar na agenda do momento, é que o novo sistema eleitoral impediria a eleição de gente ligada às facções criminosas. Segundo ele alardeia, os eleitores conheceriam melhor os candidatos de seus distritos e não votariam em quem tivesse conexões com o crime organizado. Mas é provável que o efeito seja exatamente o contrário, com as facções impondo seus candidatos às populações sob seu domínio e com isso ampliando sua influência sobre os partidos.

O sistema eleitoral brasileiro, de representação proporcional com listas abertas, é muito criticado. Grupos conservadores em geral propõem uma aproximação ao modelo de votação majoritária em circunscrições uninominais em turno único, conhecido como “voto distrital”, como nos Estados Unidos. A esquerda costuma preferir o fechamento das listas, quando o eleitor votaria só no partido, não no candidato. O modelo misto daria uma no cravo, outra na ferradura – mas, na versão de Domingo Neto, está bem enviesado na direção do voto distrital.

Mas nosso sistema eleitoral também tem vantagens. Potencialmente, ele amplia o arbítrio do eleitor: dá mais poder ao povo. Permite um ajuste fino de preferências, de maneira que não ficamos à mercê nem do paroquialismo nos distritos, nem das burocracias partidárias.

Está funcionando bem? É óbvio que não. Mas os problemas de nossa representação política não se resolvem apenas, nem mesmo prioritariamente, mexendo no sistema eleitoral – que é a mecânica de transforma votos em cadeiras no parlamento. É preciso higienizar o debate público, limpando-o das distorções que hoje o poluem; ampliar o pluralismo dos meios de comunicação, que hoje incluem centralmente as plataformas sociodigitais; bloquear os mecanismos de sujeição que são colocados em marcha por igrejas e empresas, aumentando a autonomia dos eleitores; reduzir brutalmente o poder do dinheiro; fomentar a educação política popular e gerar mecanismos que permitam uma interlocução real e permanente entre representantes e representados.

A qualidade da representação depende de um conjunto grande de condições para a participação política ativa de todos os cidadãos. Mas, nos debates que vão e voltam há mais de 30 anos, sobre “reforma política”, o foco é sempre o sistema eleitoral. Talvez por ser mais fácil mexer nele do que nas questões de fundo. Lembro sempre de uma tirada de Millôr Fernandes, que até citei em texto publicado muito tempo atrás sobre o tema:

– Qual é a ação mais importante para uma democracia perfeita?

– Mudar o sofá. Não dá pra mudar muitas outras coisas. Então, muda-se o sofá.

Mas, na verdade, nem o sofá deve mudar. As propostas se sucedem, mas o natural instinto de conservação dos deputados acaba imperando – afinal, todos se elegeram no atual sistema e em time que está ganhando não se mexe. Em 2015, no auge de seu poder, Eduardo Cunha tentou patrocinar o famigerado “distritão”. Deu com os burros n’água. É improvável que Motta triunfe onde seu mentor fracassou.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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