Mestiçagens

Eduardo Bonzatto e Uedson Diogo Silva da Cruz*, Pragmatismo Político

Este ensaio analisa o pensamento de Antônio Risério sobre sexualidade, mestiçagem e relações raciais no Brasil, destacando como suas formulações dialogam com elementos centrais de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Embora Risério recupere ideias freyrianas, seu objetivo não é reconstituir o projeto intelectual de Freyre, mas utilizá-lo como instrumento para criticar modelos contemporâneos de identidade e debates raciais. A sexualidade aparece em Risério como eixo interpretativo da formação social brasileira, marcada simultaneamente por violência, intimidade, convivência forçada e miscigenação, um cenário que, segundo ele, desafia perspectivas analíticas baseadas em binarismos raciais. O artigo examina a produção riseriana, seus pontos de controvérsia, seus argumentos sobre a especificidade brasileira e sua releitura da herança colonial.
A formação social brasileira sempre foi marcada por intensa produção intelectual que buscou explicar a relação entre raça, miscigenação e poder. Entre os autores que mais repercutiram nesse debate está Gilberto Freyre, cuja obra Casa-Grande e Senzala influenciou profundamente a sociologia, a antropologia e o imaginário nacional. No entanto, ao longo das últimas décadas, novas abordagens ganharam destaque, como as teorias de relações raciais baseadas em modelos norte-americanos e as correntes identitárias contemporâneas. Nesse contexto, surge a figura de Antônio Risério, escritor baiano cuja obra tem despertado simultaneamente interesse e controvérsia.
Risério propõe uma reinterpretação da história racial brasileira que combina antropologia, análise cultural, literatura e crítica política. Em seus ensaios, ele desloca a sexualidade, tema muito presente em Freyre para o centro do debate contemporâneo, argumentando que o Brasil se constituiu a partir de um regime de convivência íntima, violenta e mestiça que não pode ser simplificado por categorias binárias. Assim, embora Risério dialogue com Freyre, seu foco é menos recuperar o freyrianismo e mais utilizá-lo como lente para criticar interpretações atuais que, segundo ele, ignoram as complexidades do processo histórico brasileiro.
Nos últimos anos, Risério tornou-se figura polêmica em círculos acadêmicos e culturais. Sua crítica ao identitarismo, sua defesa da mestiçagem e sua recusa em aderir a concepções importadas de racialização produziram reações tanto positivas quanto negativas. Parte da esquerda o acusa de negar desigualdades raciais e reforçar uma leitura “harmonizadora” da história brasileira; parte da direita o vê com desconfiança pelo fato de defender políticas públicas de combate ao racismo e reconhecer a violência colonial, bem como seu antigo apoio a figuras importantes do partido dos trabalhadores (PT). Ao mesmo tempo, setores intelectuais independentes o valorizam por buscar uma abordagem própria e específica para o Brasil.
O que torna Risério uma figura tão difícil de categorizar politicamente é justamente o fato de ele não se posicionar dentro do dualismo identitário contemporâneo. Em vez disso, ele propõe uma visão que enfatiza a complexidade histórica, a mistura cultural e a zona cinzenta das relações sociais. Sua crítica é dirigida menos à existência de pautas raciais e mais à tentativa de instituir modelos rígidos de leitura baseados em experiências estrangeiras sobretudo norte-americanas.
Assim, Risério ocupa um lugar singular: é simultaneamente atacado e apropriado por diferentes espectros ideológicos, enquanto sua produção literária e ensaística segue orbitando em torno de temas como urbanidade, cultura afro-brasileira, poesia, política e história social. Mas é sobretudo na discussão da sexualidade como elemento estruturador da sociedade brasileira que ele realiza sua leitura mais contundente e também mais controversa.
Em 2025, Risério concedeu uma entrevista em que afirma que “Racismo estrutural é uma fantasia de professor universitário”, discutindo mestiçagem brasileira, identitarismo e raça. Embora o vídeo esteja num site de notícias. Essa entrevista ajuda a entender diretamente as posições recentes dele acerca de miscigenação e raça no Brasil.
A sexualidade, para Risério, não é apenas comportamento individual, mas um dispositivo social que moldou profundamente a formação do Brasil. Ele argumenta que a sociedade brasileira resultou de relações corporais intensas, relações estas atravessadas por violência, afeto, convivência, dominação e mestiçagem. Nesse sentido, sua análise reconhece o trauma da violência sexual contra mulheres negras e indígenas, mas também destaca que a construção da vida social foi marcada por uma proximidade física radical entre senhores, escravizados e grupos intermediários.

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Segundo Risério, a história brasileira se diferencia de sociedades estruturadas sobre segregação racial rígida. Isso porque o cotidiano colonial brasileiro era caracterizado por convivência íntima entre grupos racializados, ainda que sob estruturas brutais de hierarquia e violência. Amamentação cruzada, erotização precoce, imposição sexual e relações afetivas constituíram um quadro contraditório e complexo, onde proximidade e desigualdade coexistiam de forma constante.
Ao enfatizar esse ponto, Risério reforça sua crítica ao uso de modelos racialistas importados. Para ele, o Brasil não é compreensível por esquemas binários “branco vs. negro”, “opressor vs. oprimido” típica de sociedades onde existiu segregação espacial, jurídica e simbólica profunda. O Brasil, ao contrário, se formou dentro de um ambiente de promiscuidade social involuntária, onde corpos ocupavam os mesmos espaços e eram colocados em relações compulsórias de intimidade.
Essa perspectiva produz implicações importantes:
A mestiçagem não é vista como idealização, mas como fato histórico incontornável.
A violência sexual é reconhecida como fundante do processo, mas não exclui a existência de relações afetivas reais, ainda que assimétricas.
A identidade racial brasileira resulta de um processo único de cruzamento, convivência e conflito.
A sexualidade produziu uma sociedade profundamente mesclada, o que dificulta a aplicação de categorias fixas.
Nessa formulação, a sexualidade aparece como chave interpretativa da história social brasileira e como elemento de diferenciação com outras formações raciais modernas.
Embora Risério dialogue com Gilberto Freyre, seu objetivo não é repetir o projeto freyriano. Pelo contrário, ele recorre a Freyre de modo instrumental, selecionando elementos úteis para sua crítica contemporânea. Entre esses elementos, se destacam:
A ideia de que a sociedade brasileira se constituiu em ambiente doméstico, íntimo e corporal:
Freyre descreveu a formação colonial como processo marcado pela convivência intensa dentro da casa grande, onde amas-de-leite amamentavam crianças brancas, escravas cuidavam de meninos e relações sexuais, muitas delas violentas, ocorriam como parte da estrutura patriarcal. Risério aproveita esse enfoque para reforçar a tese de que a história brasileira é intrinsecamente marcada por miscigenação forçada e por uma íntima ligação corporal entre grupos raciais.
A relevância do contato sexual como elemento formador:
Freyre via a sexualidade como mecanismo de aproximação cultural, ainda que traumática. Risério reinterpreta essa noção ao argumentar que tal contato produziu um tipo específico de identidade brasileira, que não pode ser analisada sob a lógica racial segregacionista.
Um uso estratégico e seletivo:
O ponto mais importante é que Risério não defende a visão harmonizadora frequentemente associada ao freyrianismo. Ao contrário, ele recorta de Freyre apenas aquilo que lhe permite argumentar contra o transplante de modelos identitários estrangeiros. Freyre aparece como um “ponto de partida histórico”, não como referência normativa ou idealizante.
Grande parte da controvérsia em torno de Risério decorre de sua crítica ao identitarismo e às políticas de identidade que, segundo ele, reproduzem as categorias raciais norte-americanas. Em seus ensaios, Risério questiona:
a racialização crescente dos debates públicos,
a importação de modelos estrangeiros,
a reintrodução de fronteiras raciais rígidas,
a redução da experiência brasileira a um binarismo racial artificial,
a substituição da análise histórica pela moralização do debate.
Para Risério, políticas identitárias contemporâneas tendem a simplificar a complexidade histórica das relações raciais no Brasil, reduzindo um processo cheio de ambiguidades a termos culpabilizantes ou segmentados. Ele não nega a existência de racismo estrutural, mas afirma que o caráter mestiço e íntimo da formação brasileira exige abordagens específicas, não fórmulas importadas.
Essa posição coloca Risério numa zona de conflito: ao criticar o identitarismo, ele é acusado por alguns de minimizar desigualdades; ao defender políticas antirracistas, é criticado por outros setores como excessivamente “progressista”. Assim, sua obra está constantemente situada numa fronteira discursiva, o que explica boa parte de sua recepção polarizada.
Em entrevista a Roberto Midlej, publicada por Correio da Bahia em 2024 ele critica o identitarismo e sua instrumentalização das categorias de raça “O problema é que eles são dogmáticos, se consideram donos absolutos da verdade, e não praticantes de uma ideologia como qualquer outra. O identitarismo é uma religião.”
A maior contribuição de Risério ao debate racial brasileiro talvez esteja na forma como articula três elementos aparentemente contraditórios:
violência sexual colonial,
intimidade cotidiana,
mestiçagem como dado estrutural.
Para Risério, esses três aspectos não podem ser separados; ao contrário, constituem o cerne da experiência brasileira. A sexualidade operou como mecanismo de dominação, mas também como mecanismo de redefinição cultural. A convivência íntima gerou tensões, mas também gerou cultura, linguagem, estética, afetos, subjetividades e redes de parentesco complexas.
O Brasil, nessa leitura, não é nem uma “democracia racial” idealizada nem um país completamente estruturado em apartação racial. É um espaço ambíguo, híbrido, de relações simultaneamente violentas e próximas.
Esse caráter contraditório impede, segundo Risério, qualquer simplificação do debate racial. Ele afirma que a tentativa de impor categorias rígidas produz um apagamento das complexidades históricas e das múltiplas formas de vida que emergiram desse processo.
Antônio Risério retoma o núcleo freyriano, a sexualidade como elemento estruturador para reinterpretar a dinâmica racial brasileira no debate contemporâneo. Em seus ensaios, Risério utiliza a ênfase freyriana na intimidade doméstica e no contato corporal prolongado entre brancos, negros e mestiços como ponto de partida para criticar modelos de análise racial baseados em segregação rígida. Para ele, a experiência brasileira de contato íntimo, cruzamentos familiares, erotização e convivência forçada gera uma configuração histórica que não se encaixa facilmente nas categorias de “racismo binário”, inspiradas sobretudo na experiência norte-americana. Risério argumenta que a sexualidade colonial com todas as suas contradições, deixou como legado uma sociedade de relações raciais profundamente implicadas, em que identidades não podem ser compreendidas apenas por modelos de antagonismo racial simplificado.
Enquanto Freyre descreve esse processo como fenômeno histórico, voltado para entender a formação do Brasil patriarcal, Risério traz esse mesmo eixo para o campo da disputa intelectual atual. Ele utiliza a análise sexual freyriana como argumento contra abordagens identitárias que, em sua visão, tendem a reduzir a complexidade histórica da mestiçagem e da intimidade cotidiana a esquemas morais ou políticos importados. Assim, Risério transforma a chave da sexualidade antes analítica e sociológica em ferramenta de debate contemporâneo, defendendo que o Brasil possui uma história racial marcada não apenas por dominação, mas também por coexistência profunda, ainda que conflituosa. Temas como esses por vezes geram desconforto, especialmente nos tempos atuais. Trata-se de um debate sensível, frequentemente impulsionado por grupos identitários e associado ao que chama de “canceladores”. Em sua palestra Adeus, Identitarismo, ele o descreve da seguinte forma: “Cancelamento, como alguém definiu, é um ritual coletivo de gozo dos ressentidos.”
Em síntese, a contribuição de Risério consiste em atualizar o argumento freyriano: ele não nega as violências descritas por Freyre, mas enfatiza que a formação sexual do Brasil produziu um tipo de relação racial distinta, que, segundo ele, precisa ser compreendida dentro de suas próprias particularidades e não uniformizada por modelos internacionais. Dessa forma, Freyre fornece a base histórica; Risério, a partir dela, formula uma crítica cultural e política aplicável ao cenário atual.
Antônio Risério oferece uma leitura provocativa e complexa da formação social brasileira, na qual a sexualidade e a mestiçagem desempenham papéis centrais. Sua abordagem não busca idealizar a história colonial, mas destacar sua ambivalência fundamental — a coexistência entre violência e intimidade, dominação e convivência, trauma e gênese cultural.
Embora recorra a Freyre, Risério o faz de modo estratégico, utilizando apenas elementos que lhe permitem criticar a importação de modelos identitários estrangeiros e defender a especificidade da experiência brasileira. Assim, sua obra se apresenta menos como continuidade do freyrianismo e mais como releitura crítica e contemporânea de alguns de seus fundamentos.
A controvérsia em torno de Risério deriva do fato de que ele se recusa a se alinhar automaticamente a qualquer espectro político ou discurso racial dominante. Mas é justamente essa recusa que torna sua produção relevante: ela desafia categorias cristalizadas e exige que a história brasileira seja compreendida em toda a sua complexidade, especialmente no que diz respeito às relações sexuais e raciais que moldaram a sociedade.
Ao trazer a sexualidade para o centro do debate atual, Risério nos obriga a revisitar questões que, apesar de antigas, permanecem fundamentais para entender o Brasil contemporâneo.
Seu pensamento, portanto, não apenas relembra a contribuição de Freyre, mas a reinscreve num cenário muito mais disputado, marcado por novas sensibilidades, novos conflitos e novas formas de identidade.
Segundo o IBGE, o Brasil é um país majoritariamente mestiço, com a maioria da população se declarando parda (45,3% no Censo 2022). Essa diversidade é fruto da mistura de povos indígenas, europeus, africanos e asiáticos, evidenciada pela composição genética, que aponta para uma ancestralidade predominantemente europeia, seguida por africana e indígena

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor. Uedson Diogo é estudante da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e escritor.

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