Círculos morais e escolhas políticas, por Jorge Alexandre Neves

Círculos morais e escolhas políticas

por Jorge Alexandre Neves

A escolha de Flávio Bolsonaro para ser candidato a presidente por parte de seu pai está provocando muitos debates e especulações. Seria um blefe? Seria a mais pura e rasgada chantagem? Acho que não é nada disso, embora o próprio Flávio tenha tentado pôr os fatos na forma de uma chantagem desabrida, dizendo que tem um preço (não deveríamos nos chocar mais com tal, digamos, crueza, não é?).

Quando eu fazia mestrado em sociologia na UFPE, na virada da década de 1980 para 1990, lembro-me que li um artigo de Jon Elster (já não me lembro qual foi) no qual falava sobre a “racionalidade paramétrica” e a “racionalidade estratégica”. No primeiro caso, o ator social, político ou econômico toma uma decisão de tipo racional, porém analisa apenas suas próprias preferências e posição, ao passo que no segundo caso as decisões são tomadas buscando antever as preferências e as ações de outrem. Para o exercício da racionalidade estratégica, portanto, é preciso buscar se colocar no lugar do outro, pensar como ele, identificar suas preferências, bem como entender sua árvore de decisão.

Acredito que há muito mais coincidência do que divergência entre a decisão que Bolsonaro está tomando agora e aquela que Lula tomou em 2018. Naquele momento, Lula buscava – e a história mostrou que estava certo – preservar a relevância de seu próprio poder político e da coletividade que considerava mais relevante para o caso, que era o PT. Bolsonaro busca exatamente o mesmo hoje, porém sua coletividade relevante é sua família (em particular, os filhos, com quem tem laços sanguíneos). Esta diferença entre o partido e a família faz todo sentido e tem bons fundamentos científicos.

Em 2019, Adam Waytz e colaboradores publicaram um artigo na Nature Communications compilando evidências científicas de que progressistas têm círculos morais mais amplos, são mais universalistas, ao passo que conservadores têm círculos morais mais estreitos, são mais paroquialistas (1). Círculos morais podem ser percebidos como “quem merece nossa consideração e cuidado” (2). A família, assim, costuma ser a coletividade até a qual se expande o círculo moral dos conservadores (lembremos que Margaret Thatcher dizia que na humanidade só existem indivíduos e famílias), o que não quer dizer que a família não seja relevante para os progressistas, mas apenas que seus círculos morais costumam se expandir para além dela. É previsível, portanto, que, enquanto Lula estava preocupado com a sobrevivência do patrimônio político do PT, Bolsonaro esteja buscando a sobrevivência do poder político de sua família.

Dito isso, por que Bolsonaro abriria mão de preservar seu patrimônio político na própria família para transferi-lo a seu partido ou grupo? Assim, do ponto de vista das preferências e da posição estratégica ocupada por ele no jogo, vencer com um candidato do seu campo político, porém de fora da família, é uma opção inferior a perder com um de seus filhos como candidato ficando em segundo lugar. Quando olhamos os dados das melhores pesquisas eleitorais, fica evidente que há uma alta probabilidade de que qualquer candidato apoiado por Bolsonaro fique em segundo lugar, atrás apenas do presidente Lula, que hoje é amplamente favorito para ser reeleito. Isso ocorrendo, a família Bolsonaro manter-se-á como líder da oposição, como “dona” dos votos da direita. Seu poder político poderá até se reduzir, mas ainda assim se manterá relevante. Portanto, a opção de Bolsonaro se configura como uma típica escolha “maxmin” (3).

Desta forma, estou convencido de que a candidatura de Flávio Bolsonaro é para valer, veio para ficar. É verdade que ele disse que tem um preço para desistir. Todavia, no próprio final de semana ele pôs o preço sobre a mesa (4), reforçando algo que já tinha revelado há alguns meses (5). O preço é absolutamente impagável, pois beira o impossível que se consiga a anistia para o ex-presidente Bolsonaro, neste momento (obviamente, Flávio e seu pai sabem que ninguém poderia, de boa fé, aceitar pagar o que não tem como arcar). E, na verdade, em sua explicitação do preço, neste último final de semana, ele mostrou que, no fundo, não está negociando nada, pois afirmou que só retiraria sua candidatura para o próprio pai.

Os políticos de direita e outros atores relevantes estarão cometendo um grande erro se continuarem acreditando que a candidatura presidencial de Flávio Bolsonaro é apenas um blefe. Não se trata de blefe, mas de um comportamento previsível e quase inevitável, de alguém que segue seu instinto natural, como o escorpião na famosa fábula do sapo e do escorpião, pois do ponto de vista da capacidade analítica, o ex-presidente Bolsonaro não é, realmente, muito mais sofisticado do que um aracnídeo qualquer, pois é um típico “idiota racional”, como o classifiquei há alguns anos (6).

(1) ver: https://www.nature.com/articles/s41467-019-12227-0.

(2) ver: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/13684302231153800

p. 4, tradução minha.

(3) Muitos estão cometendo erro de acreditar que o for especial ainda é assim tão importante para os bolsonaristas, esquecendo que hoje têm mais medo do STF do que das justiças estaduais (ver: https://www.cartacapital.com.br/politica/pec-do-fim-do-foro-privilegiado-o-que-diz-o-projeto-que-se-tornou-a-nova-obsessao-do-bolsonarismo/).

(4) ver: Exclusivo: Flávio diz que preço para desistir de candidatura é ‘Bolsonaro livre, nas urnas’ – Noticias R7.

(5) ver: Flávio diz que candidato de Bolsonaro em 2026 precisará sustentar indulto ao pai no STF, e cita ‘uso da força’.

(6) ver: https://jornalggn.com.br/artigos/a-politica-e-os-idiotas-racionais-por-jorge-alexandre-neves/

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

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