Indústria naval brasileira: de Itamar ao golpe de 2016
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
A reconstrução da indústria naval brasileira entre 1992 e 2016 é indissociável da redescoberta, pelo próprio país, de sua vocação marítima. Depois de quase duas décadas de estagnação, estaleiros reduzidos a oficinas de reparo, fuga de engenheiros e ausência de política industrial coerente, o Brasil reencontrou no mar não apenas uma rota logística, mas um território a ser integrado, defendido e explorado cientificamente. Essa virada não ocorreu de modo abrupto: consolidou-se a partir do governo Itamar Franco, amadureceu sob Fernando Henrique Cardoso e atingiu seu ápice nos governos Lula e Dilma Rousseff, antes de ser bruscamente interrompida pelo processo político que culminou no golpe de 2016.
O ponto de inflexão inicial deu-se dentro da Petrobras. Até o início dos anos 1990, sua direção era majoritariamente ocupada por indicações políticas, frequentemente desconectadas do corpo técnico da empresa, que já concentrava a maior proporção de mestres e doutores entre todas as estatais brasileiras. A partir de Itamar, e de maneira sistemática nos anos FHC, a Petrobras passou a ser comandada por profissionais de carreira, formados em geologia, geofísica, engenharia de reservatórios e disciplinas correlatas. Essa profissionalização, quase sempre omitida nas narrativas correntes, foi decisiva. Libertou a empresa das flutuações político-partidárias e permitiu que o conhecimento acumulado finalmente orientasse a estratégia corporativa. Foi nesse ambiente que se desenvolveram modelos matemáticos de alta complexidade capazes de interpretar anomalias sísmicas e estruturas geológicas profundas, abrindo caminho à descoberta do pré-sal. Em outras palavras, o pré-sal não foi um acaso geológico, mas o produto direto de uma decisão institucional: colocar a ciência no comando da estatal e dar-lhe horizonte de longo prazo.
Paralelamente, o Estado brasileiro reorganizou seus instrumentos de política industrial voltados ao setor marítimo. O Fundo da Marinha Mercante voltou a operar como mecanismo efetivo de financiamento, e a Transpetro consolidou-se como empresa estruturante, responsável por renovar a frota de cabotagem e preparar o terreno para um ciclo mais ambicioso de encomendas. A estabilidade trazida pelo Plano Real permitiu que projetos de longo prazo deixassem de ser impossíveis, ainda que a apreciação cambial reduzisse a competitividade relativa da indústria naval nacional frente aos megacomplexos asiáticos. Era, porém, um período de reconstrução das condições institucionais e técnicas, não ainda de expansão volumosa.
Quando o país ingressou nos anos 2000, encontrou uma Petrobras tecnicamente madura, capaz de transformar a descoberta do pré-sal em exploração efetiva. Essa transição — da prospecção para a produção — ampliou de modo vertiginoso a demanda por navegação. Uma plataforma é um organismo vivo que exige suprimentos constantes: alimentos, químicos, módulos, peças de reposição, tubos flexíveis, equipamentos, água, combustíveis e estruturas metálicas de grande porte. Quase tudo chega por cabotagem, por meio de embarcações de apoio de múltiplas categorias. A única exceção é o transporte de trabalhadores, feito por helicópteros devido às distâncias envolvidas. A exploração em águas ultraprofundas tornou, portanto, inevitável a existência de uma frota de apoio robusta e permanente, condicionando o crescimento da indústria naval à própria viabilidade logística do pré-sal.
Mas esse processo revelou outro problema estrutural: plataformas oceânicas são ativos estratégicos vulneráveis. São estruturas fixas, de altíssimo valor, incapazes de se defender. Um país não pode permitir que unidades responsáveis por parcela substancial de sua produção de petróleo fiquem indefesas em meio ao oceano, tornadas alvos imediatos em qualquer situação de conflito. A expansão do pré-sal exigiu, assim, que a Marinha do Brasil redefinisse suas prioridades, abandonando a posição secundária em que permanecera desde o fim da Guerra Fria. Tornou-se imperativo investir em navios-patrulha oceânicos, fragatas, meios de vigilância e estruturas de comando capazes de proteger plataformas, rotas de suprimento, cabotagem e gasodutos submarinos. O fortalecimento da defesa marítima foi consequência direta da expansão industrial, e ambos os movimentos se reforçaram mutuamente.
Nesse mesmo arco histórico, o Brasil fortaleceu juridicamente sua projeção marítima por meio da ocupação permanente do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. À primeira vista, trata-se de um conjunto de afloramentos rochosos sem qualquer valor econômico direto. Mas sua ocupação contínua por pesquisadores garantiu ao país as duzentas milhas náuticas de Zona Econômica Exclusiva ao seu redor. Mais do que isso, essa área de influência se sobrepõe à ZEE de Fernando de Noronha, criando continuidade territorial e integrando o conjunto das águas jurisdicionais brasileiras num único bloco oceânico: a Amazônia Azul. Em extensão, ela rivaliza com a Amazônia continental e abriga recursos minerais, biodiversidade, rotas estratégicas e a totalidade das infraestruturas offshore. Esse território marítimo só é plenamente exercido quando acompanhado de política industrial, científica e militar coerente, e essa coerência, por duas décadas, pareceu finalmente ao alcance do país.
A redescoberta do mar coincidiu com outra transformação igualmente crucial: a modernização da navegação fluvial na Amazônia, responsável por conectar o interior agrícola ao litoral. O Rio Madeira testemunhou uma verdadeira revolução logística com a introdução de empurradores articulados e chatas de até quatro mil toneladas, capazes de transportar grãos do Centro-Oeste até o porto de Itacoatiara, no Solimões. Esse corredor reduziu custos, encurtou distâncias e tornou economicamente viável a exportação por via fluvial a partir de Porto Velho. O mesmo ocorreu na bacia Tocantins-Araguaia, permitindo que a produção do Matopiba fosse escoada até Belém. Essas hidrovias exigiram embarcações específicas, projetadas e construídas no Brasil, consolidando conhecimento técnico singular na operação em águas rasas e rios de grande variabilidade hidrológica. A navegação interior não foi apêndice do ciclo naval; foi seu complemento estratégico e logístico.
Assim, entre 2003 e 2014, a indústria naval brasileira experimentou seu maior crescimento desde o auge dos anos 1970. Saltou de sete mil para mais de oitenta mil trabalhadores, internalizou tecnologia antes inacessível, ergueu novos estaleiros e reativou plantas históricas. O país parecia ter encontrado uma fórmula rara: ciência no comando da Petrobras, política industrial coerente, logística integrada entre rios e litoral, e uma Marinha com missão renovada para proteger sua fronteira oceânica.
Esse ciclo, no entanto, era dependente de estabilidade institucional, e foi justamente essa estabilidade que se perdeu. A partir de 2014, a Operação Lava Jato desorganizou o fluxo de contratos da Petrobras, interrompeu pagamentos, paralisou estaleiros e criminalizou indiscriminadamente relações empresariais, sem distinguir ilícitos individuais da integridade da empresa. Em vez de responsabilizar pessoas preservando a capacidade produtiva — como fazem países que levam a sério sua industrialização —, optou-se por destruir a principal contratante do sistema. A austeridade fiscal subsequente completou o processo, levando ao fechamento de estaleiros e à reversão da política de conteúdo local, abrindo caminho para a importação de navios e plataformas justamente quando o Brasil se aproximava de autossuficiência tecnológica.
O golpe de 2016 consolidou esse recuo. A indústria naval voltou a ser tratada como custo; a Petrobras, fragmentada; a Marinha, novamente desprovida de meios; e a Amazônia Azul, juridicamente extensa, tornou-se economicamente e militarmente vulnerável. O país abandonou, em poucos anos, um projeto marítimo que levara décadas para se erguer.
A história desse período demonstra que o Brasil pode ser potência marítima quando combina ciência, indústria, logística e defesa. Também revela que, sem continuidade institucional, tudo isso se desfaz com espantosa rapidez.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Affairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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