Violência digital contra mulheres na política não é ‘ódio solto’, mas estratégia coordenada para exclusão, revela estudo

Um novo relatório sobre Violência de Gênero Facilitada pela Tecnologia (TF-GBV) contra mulheres na política no Brasil desmonta a tese de que o assédio online seja apenas uma manifestação espontânea de ódio.

A pesquisa, desenvolvida pela ALIGN/Data-Pop Alliance e ODI Global, conclui que a violência digital é uma ferramenta política estruturada, direcionada para controlar e punir a participação feminina na esfera pública.

 “O que a gente mostra nesse relatório é que não se trata de ódio solto na internet, mas de padrões muito claros de ataque: mulheres negras, indígenas, trans e brancas são atingidas de formas distintas, sempre a partir de normas de gênero e raça profundamente enraizadas. A violência digital é usada como ferramenta para lembrar o tempo todo quais mulheres ‘podem’ falar e quais devem ser punidas por ocupar espaço político”, afirma a pesquisadora do DesinfoPop/FGV, Julie Ricard, associada da Data-Pop Alliance e coordenadora do estudo.

O estudo analisou mais de 6 mil mensagens coletadas em grupos públicos políticos, conspiratórios e extremistas no Telegram e realizou 28 entrevistas com parlamentares e lideranças partidárias de diferentes regiões e espectros ideológicos. Além disso, também examinou documentos oficiais de partidos com representação no Congresso, cruzando dados para identificar padrões coordenados de violência digital.

Padrões de ataque interseccionais

O estudo confirma que, embora todas as mulheres na política estejam sujeitas a um nível basal de ataques baseados em estereótipos de gênero, a forma e a intensidade da violência são ativamente moldadas pela raça, etnia e identidade de gênero da vítima. Mulheres negras e indígenas, por exemplo, enfrentam agressões explicitamente racializadas e coloniais.

Uma mulher negra de esquerda entrevistada para o estudo relatou ter recebido ameaça de morte que a chamava de “macaca” e dizia que ela tinha que morar com a Marielle em outro lugar.

Já as mulheres trans sofrem violências que articulam transfobia e misoginia, muitas vezes hipersexualizando-as e questionando sistematicamente sua identidade de gênero.

De forma semelhante, o estudo identificou mensagens no Telegram direcionadas a Erika Hilton, deputada federal trans de esquerda, nas quais seu nome de nascimento (masculino) e pronomes masculinos eram utilizados intencionalmente para invalidar sua identidade.

Nessa seara, as mulheres indígenas também são alvo recorrente de ataques racializados nas redes, especialmente por meio de ofensas xenófobas e da deslegitimação de sua identidade étnica, com acusações de serem “índias falsas” ou de não serem reconhecidas por seus próprios povos.

Em comum, esses ataques se apoiam em normas sociais enraizadas que vinculam a feminilidade à domesticidade e à pureza, contestando a autonomia das mulheres. 

A violência atua, portanto, como um mecanismo de “policiamento” da ordem de gênero, como quando mulheres são instruídas a “ir lavar a louça”, enquadrando sua atuação política como uma transgressão de seu “lugar adequado” na sociedade.

Etarismo presente em todos os grupos e o exemplo de Tabata e Zambelli

Uma questão que ataravessa todos os grupos, mas surge com mais frequência nos relatos de mulheres brancas, em parte pela maior visibilidade histórica desse grupo na política, é o etarismo.

O preconceito etário aparece como uma camada adicional da violência contra mulheres na política, combinando-se ao sexismo para desqualificá-las como “jovens demais” ou “velhas demais” para o exercício do poder. Uma das vítimas foi a deputada Tabata Amaral (PSB-SP).

O estudo também registra que os ataques não partem apenas de adversários. Mais de 70% das mensagens contra a deputada Carla Zambelli vieram de grupos da própria direita, com campanhas de linchamento digital dentro do mesmo campo ideológico.

O papel da coordenação e da extrema-direita

Perpetradores com motivações políticas, frequentemente alinhados à extrema-direita, articulam e coordenam ataques que mobilizam estereótipos misóginos e racializados, amplificados pelas dinâmicas das plataformas digitais, mostra o estudo.

Os achados da análise de dados do Telegram corroboram essa organização, revelando picos de ataques compostos por mensagens repetidas, copiadas e coladas em diferentes grupos, o que indica campanhas coordenadas em vez de hostilidade espontânea. Quase todos os ataques contra políticas de esquerda analisados na plataforma (97%) tiveram origem em grupos de direita.

A violência de gênero facilitada pela tecnologia opera, assim, como uma ameaça sistêmica à democracia, pois funciona como uma estratégia para dissuadir, silenciar e afastar mulheres da vida pública. Quando certas vozes são punidas sistematicamente no ambiente digital, a representatividade e o debate plural são reduzidos.

“A principal engrenagem da violência de gênero digital na política é a visibilidade:
quanto mais uma mulher ocupa espaços de poder, lidera debates ou ganha projeção pública, mais ela é atacada. Esses ataques são frequentemente coordenados por
atores políticos e extremistas, mas também operam dentro dos próprios partidos, como
mecanismo de controle e silenciamento. Isso confirma um padrão estrutural da nossa
sociedade: mulheres que se posicionam e fazem suas vozes serem ouvidas são
constantemente alvo de tentativas de silenciamento por um sistema machista e
patriarcal”
, conclui Anna Spinardi, pesquisadora e Diretora do Programa de Feminismo de Dados da Data-Pop Alliance.

Metodologia

Como dito previamente acima, o relatório da ALIGN/Data-Pop Alliance combinou diferentes métodos de pesquisa para chegar às conclusões. Os pesquisadores analisaram milhares de mensagens em grupos políticos do Telegram, realizaram entrevistas com mulheres que atuam na política e examinaram documentos oficiais de partidos. A abordagem cruzou dados de gênero, raça e poder para identificar padrões organizados de violência digital.

1. Análise de Plataforma: Mais de 6.000 mensagens coletadas de grupos públicos políticos, conspiratórios e neonazistas no Telegram, das quais 1.165 foram classificadas como ataques de TF-GBV.

2. Entrevistas: 28 entrevistas semiestruturadas com mulheres na política (deputadas federais, estaduais, vereadoras e prefeitas) e lideranças partidárias de 13 partidos distintos, abrangendo diferentes espectros ideológicos e regiões do Brasil.

3. Revisão Documental: Análise de estatutos e sites oficiais dos 20 partidos com representação no Congresso Nacional.

O estudo adota a definição da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) para Violência de Gênero Facilitada pela Tecnologia (TF-GBV), entendida como um ato de violência cometido, auxiliado, agravado ou amplificado por meio de tecnologias ou mídias digitais, direcionado a uma pessoa com base em seu gênero.

Confira o estudo completo aqui.

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