Por uma justiça além do direito: a justiça que não cabe nos tribunais
por Carolina Lima
No dia 8 de dezembro, no Brasil, é comemorado o dia da Justiça, em homenagem ao trabalho e atuação do Poder Judiciário, mas esse texto é um convite a alargar o conceito de justiça em relação ao espaço. A noção de justiça atravessa diferentes dimensões, desde aquela em seu conceito jurídico, da aplicação imparcial e equânime das leis, passando por aquela moral, pela ideia de justiça como um conjunto de instituições que compõem o Judiciário até mesmo a justiça como um conceito social. Nos interessa pensar a justiça nessa perspectiva, incluindo princípios como liberdade, igualdade e dignidade. Especialmente porque a experiência urbana do país mostra que justiça não é apenas um princípio jurídico: é uma condição espacial. O modo como organizamos, valorizamos ou abandonamos espaços, a partir do planejamento, determina quem acessa direitos e quem permanece excluído. Assim, compreender justiça como um fenômeno espacial é essencial para redefinir a democracia contemporânea.
A centralidade do espaço na produção da desigualdade pode ser explicada pela forma como políticas públicas, investimentos e regulações são distribuídos no território. Quando determinados bairros recebem infraestrutura, equipamentos e serviços, enquanto outros acumulam precariedade, risco e invisibilidade, cria-se uma geografia da injustiça que naturaliza a desigualdade. Essa dinâmica se expressa tanto na segregação socioespacial quanto na negação do direito à centralidade.
Susan Fainstein, em seu livro “Just City”, discute sobre o foco das políticas urbanas e do planejamento durante o século XX. A autora demonstra que, por um longo período no século passado, o foco se deu em favorecimento da melhoria da situação de grupos espacialmente desfavorecidos e, nas últimas décadas, a partir do triunfo do neoliberalismo, a alocação de recursos espaciais, políticos, econômicos e financeiros se volta para o favorecimento do desenvolvimento econômico. Marcelo Lopes de Souza, em “ABC do desenvolvimento urbano” nos alerta para os nefastos impactos dessa visão em favor de um desenvolvimento que não considera uma profunda reforma urbana em favor da justiça espacial. Um urbanismo que favorece apenas o crescimento econômico acaba por atuar como ferramenta que aprofunda as contradições e desigualdades na cidade, quando poderia pensar e propor cidades mais justas.
A “cidade justa” de Fainstein propõe uma nova abordagem de desenvolvimento urbano para promover melhor qualidade de vida na economia neoliberal, focando em equidade, diversidade e participação. A autora defende que a justiça urbana no século XXI deve integrar três conceitos: equidade (distribuição de benefícios para não privilegiar os já favorecidos), democracia (processos de planejamento participativos, não tokenistas) e diversidade (reconhecimento e acomodação de diferentes grupos). Fainstein argumenta que o urbanismo focado na eficiência econômica, em detrimento da justiça territorial, produz desigualdades, e não apenas falha em reduzi-las. As evidências brasileiras confirmam essa tese: o Porto Maravilha no Rio, a Operação Urbana Água Branca em São Paulo, a expansão da especulação imobiliária em Brasília e Recife. Cada uma dessas experiências expressa como a agenda do “desenvolvimento” pode servir de motor para expulsões e apagamentos sociais.
No mesmo período de publicação de Fainstein, o geógrafo Edward Soja publica um livro, também no intuito de discutir a justiça e o espaço, chamado “Seeking Spatial Justice”. Soja argumenta que o espaço, ou a dimensão espacial, não é apenas um pano de fundo para as interações sociais e a injustiça, mas sim uma parte ativa e constituinte da própria injustiça. Ele defende que a distribuição desigual de recursos, oportunidades e poder é frequentemente manifestada e perpetuada através da organização e da apropriação do espaço. Quando transporte, saúde, lazer e serviços são distribuídos de forma desigual, o território se torna instrumento de exclusão. Há evidências claras no Brasil: em São Paulo, moradores gastam mais de três horas por dia para chegar ao trabalho; em Salvador, bairros negros seguem com os piores índices de provimento de serviços públicos; em Manaus, o colapso ambiental recai sobre comunidades periféricas; em Belém, a população do bairro Terra Firme convive com falta de drenagem que perpetua enchentes, além de remoções justificadas pela COP 30. A injustiça, assim, é inscrita no espaço.
Embora Fainstein e Soja abordem a justiça urbana e espacial de perspectivas ligeiramente diferentes, ambos convergem na necessidade de repensar as práticas urbanas para além do foco exclusivo no crescimento econômico. Eles oferecem ferramentas conceituais para que a sociedade civil e os poderes públicos possam avançar na construção de cidades que sejam verdadeiramente justas, onde a dignidade e os direitos de todos os cidadãos sejam a prioridade máxima.
Políticas urbanas tratam frequentemente o espaço como superfície técnica, um vazio disponível para intervenções, ignorando sua densidade social, que compreende práticas cotidianas, memórias, vínculos afetivos, redes de cuidado e modos de vida que conferem sentido e identidade a um território. Essa desconsideração viola princípios centrais da justiça espacial: em Fainstein, porque destrói equidade, diversidade e democracia ao apagar ou afastar os sujeitos dos locais da política; em Soja, porque rompe o direito à cidade ao eliminar a possibilidade de participação espacial e ao impedir que grupos participem e usufruam da organização do território. Destruir essa rede de vínculos ou estimular sua dissolução, especialmente, mas não somente, por meio de remoções, não é “gestão urbana”: é supressão de direitos. A classificação de favelas inteiras como “área de risco”, após décadas de abandono, funciona como justificativa para expulsões, fazendo com que populações inteiras sejam deslocadas sob a retórica da “preservação ambiental”, enquanto condomínios avançam sobre as mesmas áreas protegidas. Essas injustiças se agravam quando incorporamos a dimensão socioambiental. No Brasil, riscos ambientais e riscos sociais se sobrepõem, produzindo injustiça socioambiental. Enchentes crônicas, deslizamentos, ilhas de calor, poluição e ausência de saneamento incidem sempre sobre os mesmos grupos, evidenciando que a vulnerabilidade não é natural: é produzida. Como mostra Wagner Ribeiro em seu trabalho “Justiça espacial e justiça socioambiental: uma primeira aproximação”, justiça ambiental e justiça espacial são inseparáveis: o espaço urbano distribui também os impactos ambientais, ampliando desigualdades históricas.
Diante desse quadro, a luta pela justiça espacial exige mais do que ajustes técnicos. Requer interromper as políticas que produzem vulnerabilidade, democratizar decisões urbanas, regular o mercado de terras, reconhecer saberes comunitários e proteger territórios tradicionais e populares como componentes essenciais da cidade. Devemos retomar o potencial emancipador do urbanismo, do projeto e do planejamento urbano. Defender justiça espacial é afirmar que ninguém deve ser expulso para que a cidade funcione em função de quem já tem mais. É insistir que o lugar não é obstáculo ao desenvolvimento, mas sua condição. E é reconhecer que, no Brasil, a justiça só será plena quando for também espacial, para além de sua dimensão institucional.
Carolina Lima é doutora em arquitetura e urbanismo, mestre em geografia e geógrafa pela UFMG. Faz parte dos grupos de pesquisa COSMÓPOLIS-IEAT e PRÁXIS-EA da UFMG e do Núcleo RMBH do Observatório das Metrópoles. É autora do livro Epistemic Ambivalence: Pentecostalism and Candomblé in a Brazilian City e colaboradora da Rede BrCidades.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN “