Sancionada em 26 de novembro de 2025, a Lei nº 15.272, que altera os critérios para a conversão da prisão em flagrante em preventiva, representa um sintoma do nosso tempo. Em meio a uma das maiores crises de segurança pública desde a redemocratização, a legislação surge com a promessa de respostas firmes, mas desperta preocupações consistentes sobre a violação de garantias constitucionais e o perigoso alargamento da discricionariedade estatal sobre corpos e liberdades.
O que está em jogo é a prevalência de um punitivismo exacerbado que se sobrepõe ao garantismo penal, na tentativa de frear a criminalidade. A análise de seus eixos centrais revela como, sob o pretexto da técnica, a lei pode aprofundar o estigma e a seletividade.
1. As Novas Hipóteses de Conversão do Flagrante em Preventiva (Art. 310, § 5º)
A lei enumera circunstâncias que “recomendam” a preventiva, como reiteração delitiva e o cometimento de crime na pendência de outro inquérito. O ponto positivo é a exigência de motivação concreta (§ 6º), alinhada à Constituição.
O ponto crítico, no entanto, é a perigosa expansão do conceito de “reiteração delitiva”. Ao permitir que inquéritos e ações penais em curso, ou seja, sem condenação definitiva, fundamentem a prisão, a lei ataca diretamente o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF).
Essa lógica colide com a jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, que há muito vedam decisões baseadas em uma “vida pregressa nebulosa”. Pior, aproxima o sistema do que Foucault chamou de “penalidade por suspeita”: a punição não pelo fato concreto, mas por ser quem se é, por onde se mora, pelo grupo a que se pertence.
2. Coleta Compulsória de Material Genético (Art. 310-A)
A lei agora impõe o requerimento para coleta de DNA em uma vasta gama de crimes. Embora a medida possa, em tese, fortalecer investigações, seu risco sistêmico é alarmante. O ponto mais delicado é o uso do DNA como instrumento de vigilância e catalogação de determinados grupos sociais.
Um banco genético que cresce sem critérios estritos, combinado com a já conhecida seletividade racial e territorial do sistema, pode se transformar em um aparato de vigilância permanente dos corpos que historicamente são alvo da repressão: jovens negros, pobres e moradores de periferia. Como alertava Baratta, quando o sistema penal ganha mais ferramentas de controle, ele não se universaliza; ele radicaliza a seletividade. A nova lei, ao antecipar a coleta para a fase de suspeição, ignora o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que restringiu a coleta aos já condenados com trânsito em julgado.
3. Os Novos Critérios de Aferição da Periculosidade (Art. 312, § 3º)
Aqui, a lei tenta objetivar a análise da periculosidade, considerando modus operandi e participação em organização criminosa. O avanço garantista está na vedação expressa da prisão baseada na gravidade abstrata do delito (§ 4º), fechando uma porta que os tribunais já insistiam em manter trancada.
O grande problema, contudo, é que o § 3º, ao permitir a valoração de “inquéritos e ações penais” para medir o risco de reiteração, aproxima o sistema da predição de condutas, algo muito próximo do modelo criticado por Zaffaroni como “Direito Penal de autor”. A menção à “participação em organização criminosa” é igualmente problemática, pois um elemento probatório mínimo, mesmo que frágil, pode justificar uma preventiva quase automática.
Conclusão: Mais Ferramentas para a Mesma Seletividade
Na prática, a nova legislação torna a audiência de custódia mais técnica, forçando uma análise detalhada. Isso engrandece o papel do advogado, que deve lutar para restaurar a singularidade do sujeito contra os enquadramentos abstratos do sistema.
Contudo, a Lei 15.272/2025 revela o conflito central do nosso tempo: ao mesmo tempo em que exige racionalidade, reforça dispositivos que expandem o poder punitivo em nome da segurança. O resultado provável é o aprofundamento do encarceramento em massa, fornecendo mais “soldados” para as facções que já controlam os presídios.
No fim, como ensinou Beccaria, “não é a severidade das penas que previne o crime, mas a certeza e a racionalidade da lei”. A lei atual amplia os instrumentos; cabe ao sistema de justiça, provocado pela advocacia, impedir que eles se convertam em mais uma engrenagem da seletividade penal que adoece o país. Aguardemos as consequências.
Por Renan Bohus da Costa, Advogado Criminalista, Especialista em Direito Penal e Mestre em Direitos Fundamentais.