Quando o menino Jesus se transforma num pesadelo de horror em ‘Sombras no Deserto’, por Wilson Ferreira

do Cinegnose

Quando o menino Jesus se transforma num pesadelo de horror em ‘Sombras no Deserto’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Imagine que Jesus, na infância, não era um modelo de virtude, mas sim uma divindade sombria, volátil e incontrolável. Uma criança, dotada de poderes ilimitados, mas desprovida de empatia e misericórdia, usando seus dons para punir, matar e ressuscitar colegas em acessos de raiva infantil, transformando sua família em refém. Essa é a aterrorizante premissa do Evangelho Apócrifo da Infância de Tomé, o texto herético do século II que foi intencionalmente excluído da Bíblia canônica por apresentar um Jesus radicalmente diferente — um que precisava “amadurecer” para ser bom. Agora, o filme “Sombras no Deserto” (The Carpenter’s Son,2025), baseado nesse relato proibido, resgata essa lacuna histórica. A obra transforma a crônica apócrifa em um intenso thriller de horror psicológico, precisam se esconder em um exílio desesperado, tentando, a todo custo, humanizar e “calibrar” os poderes destrutivos do filho divino. O filme expõe a natureza gnóstica e aterrorizante do poder divino quando encontra a fragilidade humana.

Imagine uma história de horror sobre uma família refém de uma criança superpoderosa. Mas esta não é uma criança superpoderosa qualquer: é um ser Divino, um menino cujos poderes sobrenaturais encontram a fragilidade da carne humana. Uma espécie de divindade sombria, porque ainda não aprendeu a “calibrar” os seus poderes ilimitados – ele não aprendeu ainda os conceitos de empatia e misericórdia.

Uma família que, por isso, é obrigada a migrar constantemente e se esconder como uma espécie de exílio desesperado para conter o desastre: os “milagres” do menino divino que acabam se transformando em violentas formas de demonstração de poder.

E se dissermos que esse menino é Jesus? Esse teria sido Jesus na sua infância e adolescência, dotado de um poder que não é glorioso, mas aterrorizante, incontrolável e destrutivo.

Pelo menos é o que está descrito no Evangelho Apócrifo da Infância de Tomé (que mais tarde seria conhecido como o “Evangelho Pseudo-Tomé” ou “Evangelho Armênio da Infância de Jesus”), escrito no século II com autoria atribuída a Tomé, o filósofo israelita. Que não pode ser confundida com Tomé, o apóstolo de Jesus, a quem a atribuído outro livro apócrifo, o “Evangelho de Tomé”. Evangelho gnóstico que compunha a “Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta no Egito em 1945.

Nos evangelhos bíblicos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) não há registros sobre a vida de Cristo entre os 12 e os 30 anos. O “Evangelho da Infância de Tomé” cobre essa lacuna, mas ao lê-lo descobrimos por que ele foi excluído dos relatos canônicos de Cristo: apresenta uma versão de Jesus radicalmente diferente daquela que vemos na Bíblia: uma criança com poderes divinos ilimitados, mas com a maturidade emocional de uma criança comum — o que resulta em situações perigosas e até mortais para quem o irrita.

O filme Sombras no Deserto (The Carpenter’s Son), baseado nesse Evangelho apócrifo e herético, transforma a crônica sobre a história perdida da infância e adolescência de Jesus em uma história de horror/amadurecimento.

Evangelho que voltou ao noticiário descoberto recentemente (2024), datado dos séculos IV/V, na Universidade de Hamburgo, revelando a versão mais antiga conhecida desse texto apócrifo, que descreve a infância de Jesus. Embora o texto original grego seja mais antigo (século II), essas descobertas recentes são cruciais para entender a circulação e a antiguidade dessas narrativas. 

O diretor do filme, Lotfy Nathan, pega a estranheza episódica do texto apócrifo e a transforma em um pesadelo familiar coeso – como os pobres pais Maria (FKA Twigs) e o carpinteiro José (Nicolas Cage) terão que, de alguma forma, passar para o menino as noções humanas de empatia, compaixão e perdão.

Tanto o Evangelho apócrifo quanto o filme satisfazem uma curiosidade cristã: Se Jesus era Deus, ele fazia milagres quando brincava na rua? A resposta é sim, e é assustadora.

No filme, o jovem Jesus é retratado como um prodígio incontrolável.

Ele humilha professores: José tenta colocar Jesus na escola, mas o menino sabe mais que os mestres e os corrige com arrogância, fazendo os professores desistirem de ensiná-lo.

Ele controla a matéria: estica tábuas de madeira para ajudar o pai na carpintaria (já que José não é lá muito habilidoso).

Ele mata e ressuscita: mata colegas que esbarram nele ou estragam suas brincadeiras, e depois (geralmente sob pressão dos pais) os ressuscita.

A Igreja Católica e os Ortodoxos nunca aceitaram esse livro na Bíblia oficial por uma razão teológica simples: o caráter de Jesus.

Na teologia cristã clássica, Jesus é “sem pecado”. No “Evangelho da Infância”, Jesus é temperamental, vingativo e desrespeitoso com José. O texto mostra um “processo de aprendizado”: Jesus precisa aprender a usar seus poderes para o bem, e não para a raiva. Essa ideia de um Deus que precisa “amadurecer” era inaceitável para a ortodoxia.

Mas, apesar de proibido, o texto foi um best-seller na Idade Média. As pessoas adoravam as histórias sobre Jesus fazendo, por exemplo, pássaros de barro voarem ao seu bel prazer.

Suas histórias ficaram tão populares que esse milagre dos pássaros de barro foi aceito entre os muçulmanos como uma história real…

O Filme

 No início do filme, José tem visões alucinatórias em uma manjedoura enquanto sua esposa Maria dá à luz o menino Jesus. Depois de conseguirem escapar de soldados romanos que estavam levando recém-nascidos do sexo masculino e os jogando em uma fogueira, eles desaparecem na escuridão.

Quando a história recomeça quinze anos depois, os três estão morando em uma remota vila egípcia. Embora o agora adolescente Jesus (Noah Jupe) lide com uma série de preocupações comuns para alguém da sua idade, desde o incômodo com o controle excessivo do pai até espiar a bela vizinha Lilith (Souhelia Yacoub) enquanto ela está sem roupa, ele também começa a suspeitar que há algo sobre ele que seus pais não lhe contam.

Uma suspeita que é ainda mais alimentada por seus encontros com uma garota misteriosa (Isla Johnston) que está sempre à espreita, à margem de tudo. Ela cria propositalmente situações, através de brincadeiras e jogos mentais, em que Jesus vai gradualmente descobrindo os seus poderes sobrenaturais sobre a vida e a matéria. Aumentando a tensão entre Ele, sua família e as pessoas ao redor.

À medida que Jesus começa a descobrir que possui habilidades incomuns, José reage pressionando-o ainda mais.

José é elevado ao papel de protagonista trágico. Ele não é o pai calmo da tradição bíblica; ele é um homem desesperado e sobrecarregado que tenta, de todas as maneiras, impor limites e humanizar uma força que é inerentemente não-humana. Ele é o símbolo da autoridade terrestre tentando conter a autoridade divina.

Enquanto Maria age de maneira mais amorosa, embora nenhum dos dois revele segredos. Ela representa a aceitação e o amor incondicional. A tensão entre os pais – um tentando proteger a criança de seu poder, o outro tentando protegê-la do mundo – cria o principal conflito dramático.

Em pouco tempo, porém, uma série de eventos cada vez mais horríveis e inexplicáveis ​​começa a acontecer com os moradores locais, eventualmente os fazendo se voltar contra a família.

Por fim, Jesus descobre sua verdadeira identidade e, talvez sem surpresa, não recebe a notícia muito bem, sendo forçado a combater as forças que aparentemente o perseguem enquanto tenta descobrir o caminho que deseja seguir.

Isso inevitavelmente o leva a um confronto com aquela misteriosa garota, que talvez não seja a amiga que aparenta ser inicialmente e que pode, na verdade, ser… bem, você provavelmente consegue adivinhar quem é: será aquele oponente sobrenatural que, no futuro adulto, irá tentar Jesus com a dúvida na sua fé.

Sombras no Deserto escolhe focar nos milagres que destacam a crueldade e a falta de empatia do menino Jesus, que são os elementos mais chocantes do “Evangelho da Infância de Tomé”.

O filme não teme mostrar o lado sombrio de uma divindade que ainda não aprendeu o conceito de misericórdia.

Embora não seja um filme explicitamente gnóstico (mostrando Jesus como um Eon e Deus como um Demiurgo), ele adota o sentimento gnóstico de que o espírito está aprisionado na carne, e a manifestação dessa divindade é violenta e alienígena para o mundo material. O Carpinteiro e o mundo físico são insuficientes para a força que eles abrigam.

Em outras palavras, Sombras no Deserto usa o “Evangelho da Infância de Tomé” para explorar o lado não-domesticado do mito de Jesus. Ele pega a estranheza histórica do texto apócrifo e a utiliza para criar uma poderosa metáfora sobre o peso do destino e a natureza aterrorizante do poder divino quando encontra a fragilidade humana.

Ficha Técnica
Título:  Sombras no Deserto
Direção: Lotfy Nathan
Roteiro: Lotfy Nathan
Elenco: Nicolas Cage, Noah Jupe, FKA Twigs, Isla Johnston
Produção: Anonymous Content, BlueLight
Distribuição: Imagem Filmes
Ano: 2025
País: Reino Unido, França

Wilson Roberto Vieira Ferreira – Mestre em Comunicação Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no “Dicionário de Comunicação” pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros “O Caos Semiótico” e “Cinegnose” pela Editora Livrus.

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