A aquisição da Warner Bros.—incluindo HBO, Cartoon Network, Adult Swim e o acervo completo de franquias como DC, Harry Potter e Game of Thrones—pela Netflix, em acordo de mais de US$ 80 bilhões, foi descrita por comentaristas como “tragédia para o audiovisual” e “talvez a compra mais relevante da história do entretenimento”.
A concentração coloca em risco um equilíbrio já fragilizado pela crise das salas de cinema e pelo domínio de poucas plataformas no mercado de streaming. A fusão reduz concorrência direta, cria um “super serviço” e altera de forma estrutural o modo como conteúdos são financiados, distribuídos e exibidos.
Fusão inédita e ambiente pró-concentração herdado da era Trump
A fusão entre Netflix e Warner não acontece no vácuo — ela é, em grande parte, fruto de um decênio marcado por desregulação agressiva, liquefações corporativas e enfraquecimento de salvaguardas antitruste, processo fortemente acelerado durante o governo Donald Trump.
Entre 2017 e 2021, a Casa Branca promoveu uma reinterpretação histórica das leis de concorrência, flexibilizando barreiras que, desde o pós-guerra, haviam sido criadas para impedir concentrações excessivas nos setores de mídia, telecomunicações e entretenimento. Esse ambiente permitiu que conglomerados como Disney, Comcast e AT&T realizassem movimentos de expansão antes impensáveis.
O acordo Netflix–Warner — maior fusão de entretenimento desde a megacompra da Fox pela Disney — é o ápice tardio dessa reconfiguração. Ele consolida décadas de debates sobre verticalização, mas agora sob a lógica do streaming global, e não mais de Hollywood tradicional.
Trump e o setor audiovisual: um intervencionismo pró-mercado concentrado
O governo passou a considerar plataformas digitais, redes sociais e serviços de tecnologia como concorrentes diretos das empresas de cinema e TV — uma interpretação que facilitou fusões sob o argumento de que, “diante da Big Tech”, qualquer concentração audiovisual seria pequena. Essa visão justificou a liberação de fusões que, antes, seriam inviáveis.
Hoje, a fusão só se torna possível porque o marco regulatório norte-americano foi reorganizado para facilitar a concentração, não para contê-la. Reguladores europeus e latino-americanos já expressam preocupação, mas é nos EUA onde o precedente mais sólido foi aberto.
Além disso, tanto Trump quanto líderes republicanos vêm defendendo publicamente que empresas norte-americanas precisam se “consolidar para competir com a China”. Esse argumento, que mistura geopolítica com política industrial improvisada, cria um ambiente político favorável a megafusões.
Apesar do discurso liberal, Trump praticou uma forma particular de intervencionismo, marcada por três elementos:
- favorecimento a megacorporações amigas, com encontros privados e alinhamentos políticos;
- pressão direta sobre fusões específicas, como no caso da Time Warner, motivada por conflitos com a CNN;
- uma visão industrial baseada em “grandes campeões nacionais”, conceito típicos de países que buscavam proteger conglomerados estratégicos.
Essa combinação moldou o mercado atual: poucos players gigantes, competição reduzida e expansão acelerada de modelos agressivos, como o da Netflix.
Se nos anos 1930 havia os grandes estúdios verticais; nos anos 1980, os conglomerados midiáticos; nos anos 2000, as telecom; agora surge um modelo inteiramente novo: o megastreaming, com poder para definir o que será financiado, exibido, preservado ou descartado.
Trata-se da maior mudança estrutural; para muitos pesquisadores, mais perigosa, porque não regula conteúdo: regula o próprio acesso ao conteúdo.
Impacto direto sobre o cinema: menos telas, menos bilheteria, menos risco artístico
Diversos cineastas apontam que a Netflix opera sob um modelo que privilegia quantidade, rotatividade de assinantes e consumo doméstico, frequentemente abreviando janelas exclusivas nos cinemas—o que ameaça diretamente a sobrevivência das salas tradicionais. O modelo da empresa esvazia o circuito exibidor, independentemente da relevância artística ou do retorno comercial. A visão da Netflix sobre cinema difere radicalmente da tradição da Warner, priorizando lançamentos rápidos em streaming e crescimento da base de assinantes.
Especialistas alertam que a fusão elimina a competição direta entre HBO Max e Netflix, concentrando poder de definição de preços e reduzindo alternativas para o consumidor. O acordo deve enfrentar forte escrutínio de órgãos reguladores, justamente por criar um “super streaming” com poder desproporcional para ditar padrões de mercado e valores de assinatura.
A empresa já estima “sinergias” entre US$ 2 e US$ 3 bilhões—eufemismo para cortes e demissões massivas—enquanto consolida franquias e catálogos sob um único guarda-chuva corporativo.
Ameaça à diversidade criativa e ao ecossistema global de produção
Com a redução de “cinco portas de entrada” no streaming para apenas uma, criadores passam a depender de um intermediário ainda mais poderoso e agressivo comercialmente. A centralização tende a favorecer projetos de baixo risco, voltados a algoritmos e demandas de retenção, ao invés de mérito artístico ou inovação.
A fusão reforça um padrão já criticado: cancelamentos abruptos, séries interrompidas e decisões algorítmicas que eliminam obras inteiras sem aviso prévio—afetando público, criadores e preservação cultural.
Impactos severos para o audiovisual brasileiro
O mercado brasileiro, historicamente dependente da diversidade de janelas e de múltiplos compradores internacionais, sofre um impacto direto. Com menos players relevantes, diminui a competição por obras nacionais, o volume de licenciamento e a capacidade de negociação de produtoras independentes.
A fusão ainda ameaça o espaço do cinema nacional nas salas, já comprimido pela hegemonia de blockbusters internacionais e pela reconfiguração das estratégias de lançamento adotadas pelos grandes conglomerados.
Além disso, a dependência crescente de um único distribuidor global afeta políticas de fomento, coprodução e até a preservação de obras, ampliando a vulnerabilidade de um setor já marcado por assimetrias.
Consumidor no centro do furacão: menos escolha, mais preço
Com a provável extinção do HBO Max e migração total do catálogo para a Netflix, analistas já falam em aumentos significativos de assinatura, possivelmente acima de R$ 100 para os planos de maior qualidade, impulsionados pela incorporação do extenso acervo da Warner.
A justificativa da empresa—reduzir a “fadiga de assinaturas”—esconde um problema estrutural: em vez de dar ao usuário mais opções, elimina alternativas e concentra poder num único ofertante, desmontando o ecossistema que sustentou a era de ouro do streaming.
Um futuro mais pobre para quem produz e para quem assiste
O processo de fusão revela um cenário perigoso: a consolidação do entretenimento mundial nas mãos de dois gigantes—Disney e Netflix—com a Sony e a Paramount correndo por fora em um mercado cada vez mais restrito e desigual.
Se confirmada, a operação redesenha o mapa do audiovisual global, reduzindo diversidade, impondo lógicas algorítmicas e fragilizando o cinema enquanto experiência coletiva e enquanto arte.
E, para o Brasil, país que luta por uma política audiovisual robusta, a fusão é mais do que um alerta: é uma ameaça real ao futuro da produção independente, das salas de exibição e do próprio direito do público de escolher como e onde assistir às suas histórias.