A entrevista a seguir foi publicada originalmente na Phenomenal World, revista digital de análise econômica e política global mantida pelo Jain Family Institute (JFI), um centro de pesquisa independente sediado em Nova York. A conversa é conduzida por Daniel Denvir, jornalista, pesquisador e apresentador do podcast The Dig, ligado à Jacobin, conhecido por suas análises sobre política internacional, América Latina e movimentos sociais contemporâneos.
Nela, Fernando Haddad fala sobre a ascensão da extrema direita global como produto direto da crise do neoliberalismo e as dificuldades estratégicas da esquerda no século XXI e a necessidade de reconstruir formas de organização política ligadas às novas composições de classe.
O ministro também faz uma defesa da atual gestão Lula como a mais progressista da história do PT, especialmente na agenda econômica, ambiental e tributária.
A seguir, a tradução integral da entrevista:
Brasil e o Sistema Mundial
Fernando Haddad
Uma entrevista com o Ministro da Fazenda do Brasil
Como a sétima maior economia do mundo, situada entre os blocos de poder Ocidental e Oriental, o Brasil está na linha de frente dos debates contemporâneos sobre geopolítica, desenvolvimento e transição verde. Seu cenário político continua dominado pelo embate entre o pragmatismo de esquerda do governante Partido dos Trabalhadores (PT) e o populismo de direita do bolsonarismo: o primeiro tentando estabelecer um modelo de crescimento mais equitativo sob fortes restrições; o segundo reativando alguns dos elementos mais sombrios do passado autoritário do país.
Entre os quadros do PT que lidam com essa situação tensa, Fernando Haddad tem uma habilidade singular de circular entre teoria e prática, combinando sua formação acadêmica em filosofia com sua experiência no governo — tendo sido Ministro da Educação de 2005 a 2012 e prefeito de São Paulo de 2013 a 2017. Quando Lula foi impedido de concorrer à presidência em 2018, Haddad concorreu em seu lugar, conquistando 47 milhões de votos, embora tenha perdido para Bolsonaro por margem significativa. Com o retorno de Lula ao poder três anos atrás, foi nomeado Ministro da Fazenda, desde então tentando equilibrar o programa progressista do partido com a demanda de reduzir o déficit após a pandemia.
Nesta entrevista, Haddad conversa com Daniel Denvir sobre a ascensão da extrema direita, as implicações da rivalidade entre Grandes Potências, a necessidade do multilateralismo e as perspectivas para um país como o Brasil na conjuntura global atual, além de seu livro mais recente, O Terceiro Excluído (2024). Este é um texto editado de uma entrevista que apareceu originalmente no podcast The Dig, de Denvir.
Uma entrevista com Fernando Haddad
Daniel Denvir:
O que há na crise do neoliberalismo — e nas crises mais amplas da ordem liberal internacional liderada pelos EUA — que alimentou uma explosão de populismo de extrema direita em tantos países das Américas e da Europa? E, dentro desse panorama, o que torna a ascensão do bolsonarismo algo distinto?
Fernando Haddad:
A ascensão da extrema direita é um fenômeno global porque a crise do neoliberalismo é um fenômeno global. Quando as estruturas do século XX que mitigavam os efeitos do capitalismo ou promoviam alguma forma de emancipação — o sistema soviético, o desenvolvimentismo nacional, a social-democracia, o Estado de bem-estar — começaram a desmoronar, o neoliberalismo se impôs como alternativa final.
Ao assistirmos ao colapso dessas estruturas, a esquerda global não ofereceu nada de novo. E agora, enquanto o neoliberalismo entra em crise, a esquerda novamente fracassa em se reposicionar ou avançar seu programa. Isso porque, de certa forma, ainda estamos de luto pelo passado, em vez de construir o futuro. Em vez de imaginar novas estruturas, estamos presos ao funeral das antigas. Nesse vazio político, a extrema direita enxergou uma oportunidade extraordinária para ascender. Ela prospera nessas condições porque encontra bodes expiatórios — a forma mais astuta de conquistar corações e mentes para um projeto fundamentalmente destrutivo.
A forma como isso ocorreu dependeu das circunstâncias locais. No Brasil, tomou a forma de um ex-capitão do Exército profundamente desqualificado, que emergiu das sombras da ditadura militar e passou toda a carreira defendendo um retorno ao autoritarismo. Foi Bolsonaro quem, por fatores específicos — incluindo a tentativa de assassinato durante a campanha — conseguiu chegar ao poder com ajuda de um discurso populista de extrema direita. Em escala global, acredito que vitórias assim são resultado dessa crise do neoliberalismo e da incapacidade da esquerda de responder a ela.
DD:
Vamos olhar para algumas respostas recentes da esquerda. Na Europa, partidos como a França Insubmissa e o Podemos usaram métodos populistas com níveis variados de sucesso; nos EUA tivemos experiência semelhante com Bernie Sanders, embora sem nosso próprio partido por razões específicas do contexto americano. No Brasil, o PT foi o grande partido de massas da esquerda do final do século XX, liderando a luta contra a ditadura e hoje liderando a resistência contra a extrema direita. Neste momento político perigoso, numa era geralmente considerada pós-partidos de massa, como a esquerda deve pensar a forma e a organização partidária?
FH:
Antes de Lula ser eleito em 2022, passamos sete anos fora do poder, consequência de dois fatores. O primeiro foi um golpe parlamentar contra a presidenta Dilma em 2016. Até então, a América Latina tinha longa história de ataques militares violentos às instituições democráticas; mas esse golpe foi de outro tipo, pois ocorreu inteiramente dentro das instituições democráticas e tinha como único objetivo retirar o PT do poder.
O segundo fator foi a decisão de impedir Lula de concorrer em 2018, eleição que certamente venceria, por conta das acusações da “Operação Lava Jato”. Essa história é conhecida. A Lava Jato começou como investigação anticorrupção, mas logo se tornou arma política para barrar Lula. Assim, acabei concorrendo como candidato do partido. Foi crucial que o PT disputasse aquela eleição para mostrar que continuava apto a competir. Mesmo derrotados, fomos ao segundo turno e obtivemos cerca de 45% dos votos.
O governo Bolsonaro foi um desastre completo, e uma vez que Lula foi exonerado, pôde finalmente concorrer novamente em 2022. Ainda assim, foi muito difícil competir contra a extrema direita quando ela estava no poder e disposta a usar todos os meios possíveis para mantê-lo. Então fomos compelidos a formar uma aliança com a centro-direita democrática. Antes do bolsonarismo, nossos principais adversários eleitorais eram o PSDB, partido de centro-direita essencial para a redemocratização. Diferente de Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era uma pessoa civilizada e culta, com compromisso básico com valores democráticos. Construímos então uma aliança com forças desse tipo, permitindo derrotar a extrema direita e retornar ao governo.
Como resultado, nosso programa atual contém elementos que podem ser descritos como centristas, mas ao mesmo tempo busca recuperar direitos sociais suprimidos pelo bolsonarismo: aumento do salário mínimo, combate à fome, proteção da autonomia universitária, garantia da liberdade de expressão etc. Este governo do PT também está avançando demandas sociais que não estavam na agenda de governos anteriores, como taxar super-ricos para redistribuir renda.
DD:
Como o populismo de esquerda nos EUA e na Europa se compara ao caso do PT? O PT é claramente a força dominante da esquerda brasileira, mas há também partidos como o PSOL, com quem o PT tem relações cooperativas e às vezes conflituosas.
FH:
Acho que a esquerda precisa voltar ao debate das classes sociais, e o PT tem uma característica importante: não é um partido dogmático. É um partido pragmático, que busca interpretar a realidade histórica e agir de acordo com ela. Suas raízes estão no movimento sindical do ABC paulista, região mais industrializada do país. Mas recentemente o partido se abriu a outros grupos sociais.
Hoje temos muitas pessoas que, usando o jargão tradicional, simplesmente não conseguem vender sua força de trabalho ao capital e precisam encontrar outras formas de sobreviver, já que o capitalismo não lhes oferece oportunidades. O PT tenta estabelecer vínculos com esse “precariado”. Eles não são os mesmos operários do passado; em muitos casos, são pessoas que gostariam de ter empregos industriais, mas são impedidas por fatores históricos.
Também buscamos construir laços com outro grupo emergente: a classe criativa, o que teóricos italianos chamam de “cognitariado”, cuja força de trabalho é mais criativa do que produtiva. No meu entendimento, não devemos desistir de uma análise de classe desses atores, que são tão significativos quanto o proletariado industrial, embora diferentes.
Costumo ler autores como Hardt e Negri, que falam em “multidão”. Mas quando se fala em multidão, perdem-se especificidades desses grupos que têm perspectivas particulares, mesmo se não homogêneas. A luta emancipatória hoje depende de compreender que as classes não proprietárias estão longe de ser homogêneas. Têm diferentes pontos de vista políticos, estéticos, culturais — e o papel da política é dar a elas um projeto comum. Isso não vai emergir mecanicamente das condições econômicas; só virá da atividade de um partido como o PT.
DD:
Ou seja, a forma partidária expressa a composição específica da classe trabalhadora em determinada conjuntura?
FH:
Sim. Precisamos escapar do dogmatismo da teoria clássica de classe. A ideia de que existe uma classe unificada que representa os interesses da humanidade não resiste à história. No capitalismo, apenas as classes proprietárias são homogêneas. Elas coordenam seus interesses quase por telepatia. Sabem espontaneamente o que defender. É como se pudessem prescindir da política.
Para nós é diferente. As classes não proprietárias enfrentam dilemas que não podem ser resolvidos por um único sujeito universal. Para avançar os interesses comuns da humanidade, precisamos de mais política, não menos: mais engenhosidade, mais imaginação socialista do que tínhamos cem anos atrás.
DD:
Como sua experiência na última década — ver Lula ser preso, depois perder a eleição para um extremista de direita — o levou a escrever O Terceiro Excluído: Contribuição a uma Antropologia Dialética? O livro explora as bases dos antagonismos sociais e culturais e como superá-los pela luta emancipatória. Você é Ministro da Fazenda, mas também filósofo. Que tipo de reflexão filosófica esse momento exigia?
FH:
Minha experiência política me permitiu pensar a questão da sociabilidade, que articulei com minha pesquisa acadêmica no livro. O argumento central é que a antropologia parece uma disciplina conservadora porque a maioria dos antropólogos não aceita a contradição como elemento central da sociabilidade humana. Mas podemos chegar a outra visão se usarmos as categorias hegelianas de identidade, diferença e contradição.
Aplicá-las às ciências naturais é um erro. Mas, se as vemos como dimensões da intersubjetividade humana, percebemos que capturam como as pessoas escolhem viver juntas. Se não fossem os conceitos de identidade e diferença, por exemplo, injustiças como a escravidão seriam impossíveis. Se os seres humanos se vissem como iguais, dominariam a natureza sem dominar uns aos outros.
Esse problema da sociabilidade é um dos que diferenciam liberais de socialistas. Para socialistas, a desigualdade econômica é fato de contradição, não mero marcador de diferença. Um projeto emancipatório precisa reconhecer que há contradição entre proprietários e não proprietários, e, ao mesmo tempo, aceitar que existem diferenças entre os não proprietários que só podem ser superadas politicamente — não haverá alinhamento natural entre eles só porque são dominados.
Uma sociedade emancipada também exigiria nova relação com a natureza, mais ecológica e menos econômica. Exigiria formas de organização e produção que respeitem as diferenças entre pessoas e entre humanidade e ambiente. Essa nova sociedade só pode ser forjada quando a política cria condições para superar nossas contradições presentes. Por isso é preciso voltar às classes sociais e discutir o que produz contradição e o que produz diferença. É um convite a recolocar a dialética na agenda.
DD:
José Dirceu, fundador do PT, disse recentemente que o atual governo Lula é um “governo de centro-direita”. O que acha dessa avaliação e da contradição que ela aponta? Por um lado, parece claro que uma frente ampla é necessária para conter a extrema direita, ainda mais com o Congresso controlado por adversários. Por outro, ainda há urgência de um programa de esquerda que transforme o Brasil e enfrente as raízes da reação da extrema direita.
FH:
Discordo da afirmação do Dirceu. Dos nossos cinco governos, eu diria que este é o mais à esquerda. Não tenho dúvida. Colocamos em movimento uma mudança profunda na agenda econômica do país.
Cito alguns exemplos: é a primeira vez que, ao fazer um ajuste fiscal, o governo exige contribuição dos ricos. Antes, quem pagava era quem ganhava salário mínimo ou dependia de assistência social. Agora, aceitando a necessidade de enfrentar o déficit pós-pandemia, insistimos que isso deve ser financiado pelos mais ricos. Nunca colocamos tanta ênfase na desigualdade. O PT sempre foi referência no combate à pobreza; mas, quanto à desigualdade, evoluímos — ela agora está no centro de nossa agenda.
Do ponto de vista ambiental, este também é o governo brasileiro mais progressista da história. Lideramos o debate global sobre financiamento da preservação das florestas tropicais, sobre criar coalizão por um mercado de carbono justo, sobre taxação dos super-ricos durante nossa presidência do G20 — propostas inéditas.
Também defendemos o multilateralismo e a necessidade de integração regional para evitar o retorno a um mundo bipolar. Portanto, acredito que o terceiro mandato de Lula será reconhecido como seu período mais progressista — e espero que o quarto seja ainda mais.
DD:
Como você vê o poder geopolítico e geoeconômico dos BRICS hoje e no futuro? Poderiam os BRICS articular alinhamento entre países do Sul Global para um sistema político-econômico alternativo, enfrentando desigualdades entranhadas na ordem mundial dominada pelos EUA? Penso na Conferência de Bandung, 70 anos atrás — um momento de política tercermundista que transcendeu diferenças entre monarquias, democracias e Estados socialistas. Os BRICS poderiam ecoar ou aprender com essa experiência?
FH:
Precisamos ser realistas quanto ao que os BRICS podem alcançar, embora devamos explorar todo o potencial do bloco. Em primeiro lugar, os BRICS têm função primordial de fortalecer o G20. Sem eles, o G7 dominaria todos os debates geopolíticos. Os BRICS impedem que o G7 fale em nome da humanidade, ignorando outros atores relevantes. Sua missão é demonstrar que o mundo mudou — e que existem novos atores políticos que precisam ser respeitados. Se quisermos reformar organizações internacionais de maneira que reflitam as transformações das últimas décadas, os BRICS serão vitais.
Outra dimensão é a relação dos BRICS com o Terceiro Mundo. Aqui é incerto o papel que a China desempenhará. Trata-se de um país em transição, e há dois caminhos possíveis: um tipo de socialismo do século XXI — visão mais otimista — ou a consolidação de um capitalismo tradicional — visão pessimista entre progressistas.
Pode ser que a China represente apenas mais um projeto nacional de ascensão hegemônica, como Espanha, Holanda, Inglaterra ou EUA no passado. Se simplesmente substituir os EUA como potência dominante, o Terceiro Mundo será prejudicado e a divisão internacional do trabalho se manterá.
Mas se a China adotar um projeto mais generoso, com transferência de tecnologia e nova geografia industrial que ofereça mais oportunidades aos países em desenvolvimento — uma alternativa mais democratizada — então podemos ter outro resultado. O futuro da China está no centro das questões políticas mais importantes do presente.
DD:
Pensando na relação da China com o mundo — e na possibilidade de assumir o papel hegemônico americano — mencionou-se a importância da transferência de tecnologia. A revista Phenomenal World mostrou que empresas chinesas investiram mais de US$ 227 bilhões em 461 projetos de manufatura verde em 54 países desde 2011, sendo 88% desde 2022. Em dólares ajustados pela inflação, isso supera o Plano Marshall. Existe possibilidade real de a China se relacionar com outros países de forma diferente do Ocidente, permitindo que criem seus próprios modelos de desenvolvimento por meio dessas transferências tecnológicas e fábricas no exterior?
FH:
Essa é outra questão que só a história responderá. Existe a possibilidade de integrar países de maneiras totalmente inéditas. Mas a exportação de capital de países ricos para países em desenvolvimento não é novidade. Isso ocorre desde o fim do século XIX. A revolução industrial — especialmente a segunda, com a máquina a vapor e as ferrovias — envolveu enorme exportação de capital, integrando regiões atrasadas ao capitalismo.
O Brasil se industrializou muito entre 1930 e 1980 com financiamento proveniente da renda do café exportado. Portanto, não é novo que investimentos estrangeiros iniciem ciclos de desenvolvimento em países periféricos ou semiperiféricos.
Hoje poderíamos ver algo qualitativamente novo, não apenas repetição dos ciclos do passado. Mas isso depende de como a China pretende se relacionar com seus parceiros: se por meio de desenvolvimento mais igualitário ou guiado por prerrogativas nacionais.
DD:
Ainda não sabemos para onde vai o modelo de desenvolvimento verde chinês, mas sabemos que a relação econômica da China com o Brasil remodelou profundamente o país desde os anos 2000. Lula assumiu em 2003 durante um boom global de commodities impulsionado pelo crescimento chinês, que demandava matérias-primas de países como o Brasil. Aquele boom deu ao PT espaço fiscal para redistribuir renda, com forte crescimento do PIB — um feito histórico. Mas também contribuiu para a desindustrialização e reprimarização da economia, com exportações primárias e agronegócio dominando o cenário.
Qual é sua avaliação dessa trajetória contraditória? Como lidar com a dominância do agronegócio hoje? Economicamente, isso dificulta um desenvolvimento mais sustentável e equitativo; politicamente, parece sustentar forças reacionárias e antidemocráticas. Mas mudar isso é difícil, pois a economia precisa de receita externa.
FH:
O centro da sua pergunta é a divisão internacional do trabalho. Nessa divisão, atividades de maior valor agregado se concentram em poucas regiões — o núcleo do capitalismo — onde se acumulam aquelas forças criativas que mencionei. Ali o capital obtém superlucro — semelhante à renda — extraído de atividades que agregam conhecimento à produção. Isso gera fluxo permanente de riqueza da periferia para o centro. Assim como a riqueza se concentra em poucas classes, também se concentra em poucos países.
A questão aqui é saber se o projeto chinês é compatível com esse padrão histórico. A natureza do sistema econômico chinês — suas relações internas entre trabalhadores e elites — tem implicações externas. É possível que a China reproduza a assimetria centro-periferia, mantendo a estratificação global.
Nesse contexto, o Brasil precisa avançar um plano nacional de desenvolvimento que impeça a reprimarização e valorize nossas vantagens competitivas — especialmente em energia limpa e minerais críticos — permitindo pensar novamente em reindustrialização. Mas isso não será possível sem parcerias tecnológicas que nos permitam agregar valor ao que produzimos.
DD:
Seu ministério está desenvolvendo um novo plano de industrialização verde. Nos EUA, o governo Biden lançou uma política industrial verde que, embora fosse ruptura com a ortodoxia neoliberal, foi insuficiente — dependia de incentivos fiscais, evitava gasto direto e estava presa à nova Guerra Fria com a China. Com Trump, partes essenciais estão sendo desmanteladas. O que se pode aprender? Como os esforços atuais do Brasil se comparam aos dos EUA?
FH:
Hoje o Brasil pensa em termos de finanças globais. Queremos criar instrumentos de financiamento da transição ecológica que permitam modelos de desenvolvimento não restritos a regiões específicas. Quando falamos em taxar super-ricos, não significa apenas que cada país deve taxar seus bilionários — pois suas fortunas são globais, não nacionais. Temos 3 mil famílias com riqueza acumulada de R$ 15 trilhões (cerca de US$ 3 trilhões). Precisamos de mecanismos que coloquem mesmo uma pequena fração dessa riqueza a serviço de um projeto global de transformação ecológica, combatendo miséria e falta de oportunidades.
Se não dermos esse passo — construir arquitetura de governança internacional com orçamento e visão de futuro — cometeremos o erro de acreditar que competição interestatal ou intercapitalista conseguirá enfrentar os desafios humanitários atuais.
DD:
As empresas de tecnologia são hoje as mais poderosas do mundo, e seus CEOs são as pessoas mais ricas que já existiram. Nos EUA ficou claro que a oligarquia tecnológica encontra expressão política em um fascismo autoritário. O papel da IA é particularmente impressionante: investimentos em IA respondem por 40% do crescimento do PIB americano este ano e 80% dos ganhos na bolsa. O que você acha do papel das big techs? Que desafios elas trazem para um projeto de esquerda como o do PT? E, mais amplamente, alguns marxistas dizem que as big techs acabaram com o capitalismo e criaram um sistema de “tecnofeudalismo”, baseado em renda e não em lucro. Outros, como Evgeny Morozov, discordam. Qual é sua posição?
FH:
Os Estados-nação precisam ter coragem de regular o setor de tecnologia em seus próprios territórios — e é isso que o Brasil fez ao enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei para regular a concorrência digital. A proposta introduziria níveis mínimos de competição para garantir que empresas e capital brasileiros não se tornem presas fáceis dessas multinacionais.
O mais intrigante sobre as gigantes da tecnologia é que elas insistem em regras absolutamente incompatíveis com os princípios que afirmam defender. Elas elogiam o liberalismo e a livre concorrência, ao mesmo tempo em que contestam o tipo de projeto que elaboramos e exigem tratamento preferencial — como se seu enorme poder já não fosse, por si só, um privilégio suficiente.
Desde que o conhecimento se tornou um fator de produção — um fenômeno do pós-guerra que se intensificou a partir dos anos 1980 —, vimos novos cercamentos destinados a proteger os monopólios da economia digital. Isso permite que as empresas de tecnologia obtenham superlucros sob a forma de renda, mas isso não guarda nenhuma semelhança com o mundo feudal; absolutamente nenhuma. Trata-se, na verdade, da quintessência do capitalismo: seu estágio mais avançado. O capitalismo transformou em mercadorias a terra, o trabalho e o dinheiro — as três “mercadorias fictícias” de Polanyi — e agora entrou em uma fase em que transforma o próprio conhecimento em mercadoria. Em meu trabalho acadêmico, descrevo essa fase como “super industrial”. Não é um mundo feudal, mas um mundo de comodificação total, no qual o capitalismo é levado ao paroxismo. Embora eu compreenda o apelo retórico da tese do “tecnofeudalismo”, acredito que esse termo mais confunde do que esclarece a situação presente.
DD:
Vamos voltar à geopolítica e à geoeconomia. Se os EUA e a China não conseguirem trabalhar juntos para reequilibrar a economia global, promover estabilidade geopolítica e desarmamento, e apoiar uma transição energética justa — se os EUA continuarem a travar uma nova Guerra Fria —, então estamos claramente indo na direção errada. Em meio à crise mais ampla da ordem internacional liberal, ao genocídio em Gaza, às guerras tarifárias de Trump, aos ataques dos EUA a embarcações na costa da América Latina, à guerra por procuração entre Ocidente e Rússia etc., qual é sua visão para uma nova ordem global? Como podemos começar a construí-la?
FH:
Na era da Guerra Fria, a União Soviética representava uma ameaça militar aos Estados Unidos, mas não uma ameaça econômica; ela nunca foi um ator global na disputa pelo controle dos mercados. Depois, quando finalmente surgiu um rival econômico, foi o Japão — uma nação desarmada, que podia ameaçar a hegemonia americana economicamente, mas não militarmente. A China, por outro lado, é um desafio muito maior para os EUA porque combina poder militar com força econômica. Uma repolarização do mundo em torno dessas duas potências poderia ter efeitos ainda mais desastrosos para a humanidade do que conflitos anteriores, que foram resolvidos sem que se recorresse a uma guerra quente.
O conflito que o governo Trump parece querer acender seria um choque sem precedentes históricos. É por isso que as forças civilizatórias do mundo apostam tanto no multilateralismo como possível antídoto. No Brasil, o governo tem lutado por um acordo entre a União Europeia e o Mercosul para criar rotas comerciais alternativas. Acredito ser essencial criar esses polos alternativos, capazes de impedir que uma repolarização ocorra.
Já vimos como os Estados Unidos reagiram à ascensão do poder econômico e militar da China, mas a forma como a própria China irá responder também terá implicações para todo o planeta. Se houver apenas uma disputa por hegemonia, uma luta por poder, creio que enfrentaremos muitas dificuldades; mas se a China estiver aberta a uma abordagem diferente — um reequilíbrio geopolítico que implique concessões inclusive para aqueles que não têm poder, um espírito de compromisso que envolva solidariedade internacional e generosidade —, então talvez possamos enfrentar alguns dos problemas colocados pelas fronteiras nacionais, problemas impossíveis de resolver enquanto essas fronteiras forem vistas como barreiras intransponíveis. Há aqui um papel claro, político e pedagógico, para as forças progressistas globais.
DD:
Quero concluir com uma pergunta mais ampla. Como você lida com todas as contradições e compromissos inevitáveis de ser ministro da Fazenda de um país dos BRICS, que precisa perseguir um programa reformista limitado por restrições estruturais tanto domésticas quanto globais, e ao mesmo tempo permanecer marxista e socialista, com uma visão de horizonte pós-capitalista que às vezes parece muito, muito distante?
FH:
Se você sonha com um mundo melhor, se imagina que a humanidade não vai parar em seu estágio atual — que buscará formas alternativas de organização social que permitam às pessoas se desenvolver como cidadãs globais —, então você não pode se impedir de enfrentar as praticidades do presente. Sempre mantenho em mente que, além de ser responsável perante os outros, tenho de ser responsável perante mim mesmo quando deixar os cargos que ocupo. Em nenhuma das minhas posições anteriores — seja como Ministro da Educação, como prefeito de São Paulo ou agora como Ministro da Fazenda — me encontrei numa situação em que, 20 anos depois, eu olharia para trás e sentiria vergonha das decisões que tomei à luz dos princípios e valores que defendo. Portanto, continuarei empurrando a carroça para onde acredito que ela deve ir. Pode ir mais rápido ou mais devagar, mas sei que estou empurrando na direção certa.