O que está em jogo na visita de Putin à Índia

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, desembarcou na Índia nesta quinta-feira 4 para uma visita de dois dias com o objetivo de reforçar a parceria entre os dois países, uma relação que perdura há quase oito décadas de turbulências geopolíticas.

O chefe do Kremlin foi convidado pelo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi para a 23ª cúpula anual Índia-Rússia, realizada na capital do país asiático. É a primeira visita de Putin à Índia desde o início da Guerra na Ucrânia, em 2022.

Ambos os países já sinalizaram a intenção de estreitar a “Parceria Especial e Privilegiada” – termo adotado oficialmente para as relações russo-indianas em 2010 – e “trocar visões sobre assuntos regionais e globais de interesse mútuo”, afirmou o Ministério do Extreior da Índia em um comunicado.

Antes da chegada de Putin, o porta-voz e chefe de gabinete de Putin, Dmitry Peskov, destacou a importância de defender as relações e o comércio entre Índia e Rússia. A afirmação ocorre num momento em que a Índia vem sofrendo sobretaxas dos Estados Unidos por causa da compra de petróleo russo.

Já a Rússia enfrenta um número cada vez maior de sanções ocidentais por causa da invasão na Ucrânia. “Temos que proteger nosso comércio da pressão externa”, afirmou Peskov à imprensa. Segundo o porta-voz de Putin, há discussões em andamento sobre alternativas de pagamento para contornar essas sanções.

Também está na agenda o intercâmbio de trabalhadores, já que cada vez mais indianos buscam emprego na Rússia. Aos repórteres, Peskov também citou os acordos de defesa da Rússia, incluindo a venda de sistemas de defesa antiaérea S-400, caças Sukhoi-57 e pequenos reatores nucleares modulares.

A Índia é, de longe, o país que mais compra armas da Rússia. Além disso, Moscou responde por mais de 35% das importações de petróleo bruto da Índia – antes da Guerra na Ucrânia, eram apenas 2%. No entanto, sanções dos EUA vem obrigando as refinarias indianas a diversificar seus fornecedores, indica a empresa de inteligência marítima Kpler.

Tarifas ’empurram’ Índia para a Rússia

Mesmo assim, especialistas consultados pela DW afirmam que os laços entre Índia e Rússia têm se mostrado resilientes à pressão ocidental, incluindo às tarifas impostas pelo presidente americano, Donald Trump .

“A visita de Putin à Índia manda uma mensagem clara para o bloco ocidental de que a Rússia não está isolada globalmente”, avalia o pesquisador Rajan Kumar, do Centro de Estudos da Rússia da Universidade Jawaharlai Nehru. A Índia ainda considera as relações com a Rússia estrategicamente importantes e uma forma de equilibrar as relações, em nível geopolítico, tanto com o Ocidente quanto com a China, acrescenta.

“As políticas de Trump geraram uma perda de confiança em relação aos Estados Unidos e aumentaram a importância da Rússia. Da mesma forma, isolar a Rússia significaria aproximá-la da China, algo que a Índia não gostaria que acontecesse”, analisa o pesquisador.

Embora a Rússia mantenha uma relação sólida com a China, o Kremlin, por outro lado, vê com desconfiança a crescente influência geopolítica de Pequim. De acordo com Kumar, essa é a razão pela qual a Rússia vem incentivando a participação da Índia na geopolítica eurasiática, por meio de plataformas como a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) e os Brics.

Além disso, diz o pesquisador, diferentemente das nações ocidentais, a Rússia não busca dar “lições” sobre assuntos internos, nem impõe condições para a cooperação bilateral. “A visita de Putin reforça essa parceria ‘especial e privilegiada’ que é baseada em interesses comuns, numa confiança histórica e na geopolítica compartilhada”, completa Kumar.

Por que Rússia e Índia são aliadas?

As relações entre Moscou e Nova Délhi foram estabelecidas logo após a Índia conquistar a independência, em 1947. A hoje extinta União Soviética ganhou a confiança da Índia ao apoiar o desenvolvimento industrial do país asiático e fornecer apoio diplomático na disputa com o Paquistão pela região da Caxemira.

Em 1971, Moscou apoiou abertamente a Índia na guerra com o Paquistão, que, por sua vez, recebeu apoio de Estados Unidos e China. Além disso, Nova Délhi começou a adquirir grandes quantidades de armas fabricadas na União Soviética e a produzir algumas delas, como o tanque T-72, localmente, com licença soviética.

Esses laços estreitos no setor de defesa sobreviveram ao fim da Guerra Fria, quando o Kremlin, em busca de investimentos na década de 1990, ajudou a Índia na produção de mísseis e caças projetados em grande parte pela Rússia e, mais tarde, no desenvolvimento do submarino nuclear indiano Arihant.

Em 2002, ambos os países assinaram um acordo para a exploração espacial, que previa que a Rússia auxiliasse a Índia em lançamentos e na tecnologia de satélites. Outros acordos foram assinados após Modi assumir o poder em 2014, incluindo tratados sobre energia nuclear e venda de urânio.

Já em relação à Guerra na Ucrânia, que foi iniciada pelo Kremlin em 2022, a Índia tem sido cautelosa. Para não irritar nem a Rússia, nem os países ocidentais, o país asiático pediu o fim da guerra, mas não condenou diretamente a invasão russa.

“Como parceiros de longa data, Índia e Rússia acumularam bastante confiança mútua, o que vem sendo frutífero num momento em que os dois países enfrentam desafios geopolíticos – não só dos EUA, mas também da China”, sublinha o ex-diplomata D. Bala Venkatesh Varma, que serviu como embaixador indiano na Rússia. “É de se esperar que, durante a cúpula, os dois líderes reforcem o investimento nessa parceria estratégica bilateral”, acrescenta.

Autonomia estratégica

De acordo com Harsh Pant, coordenador do programa de estudos do think thank indiano Observer Research Foundation (ORF), a diplomacia “imprevisível” de Washington faz com que a Índia tenha mais cuidado ao fechar parcerias.

“Os Estados Unidos podem pressionar a Índia a diminuir o contato com Moscou, mas a Índia valoriza muito as relações com a Rússia, principalmente nas áreas de defesa e energia, para comprometê-las”, afirma o pesquisador. “Esse equilíbrio permite que a Índia mantenha relações sólidas com a Rússia, ao mesmo tempo em que administra a parceria estratégica mais ampla com os EUA”, acrescenta.

Com a Rússia e a Índia buscando interesses mútuos e uma “autonomia estratégica”, o analista lembra que as raízes dessa parceria vão “além das pressões imediatas do governo Trump”.

A visita de Putin também deverá dar pistas sobre as prioridades na política externa de Índia e Rússia, em um contexto em que a dinâmica de poder vem mudando em todo o planeta. “O ‘timing‘ da visita destaca a abordagem de Nova Délhi em relação à política externa: que as parcerias estratégicas não são jogos de soma zero”, explica Kanwal Sibal, ex-secretário de Exterior da Índia e embaixador na Rússia.

“Os EUA não podem ditar qual deve ser a política externa indiana. Precisamos nos adaptar e resistir”, completa ele.

Esse argumento é ilustrado pela postura cuidadosa da Índia em relação ao governo Trump. Atualmente, Índia e EUA negociam um acordo comercial focado na redução de tarifas e na nas preocupações de Washington com o déficit comercial com Nova Délhi. Além disso, a Índia está promovendo um acordo histórico de 1 bilhão de dólares (5,31 bilhões de reais) entre a americana GE Aerospace e a indiana Hindustan Aeronautics Limitied, para a aquisição de motores a jato americanos para os caças indianos Teja.

Mas isso não impede que a Índia estenda o tapete vermelho para Vladimir Putin. De acordo com Sibal, a cooperação na área de defesa com Washington continua, “mas isso não diminui em nada a importância estratégica da Rússia”.

“A Índia acolhe a relação dos com EUA quando ela é vantajosa, ao mesmo tempo que resiste à pressão para abandonar Moscou. A visita de Putin demonstra que a política externa indiana funciona de forma autônoma, e não de acordo com as preferências de Washington”, conclui ele.

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